Traindo o espírito da lei

Em geral, o Alcorão critica o comportamento de algumas pessoas do Povo do Livro e diz que a chegada de Jesus (SWS) fazia parte do esquema divino para incutir o verdadeiro espírito da lei entre os judeus que tinham reduzido  a Torá a uma "coleção de injunções inanimadas e rituais tristes". Ele cita o comportamento de uma comunidade judaica que vivia no litoral (7:163).

Foi pedido aos judeus que guardassem o Sabath, nãopraticando compromissos mundanos. Aconteceu que "certo dia de seu Sabath, os peixes apareceram abertamente, mas no dia que não era Sabath eles não apareciam".  Isto aconteceu para que fossem postos à prova. No entanto, a fim de preservar a aparente santidade do Sabath e, contudo, alcançar seu objetivo, alguns deles imaginaram uma estratégia inteligente de que o peixe desaparecesse no sábado, para que no domingo, dia seguinte ao Sabath, eles pudessem pescá-lo. Apesar deste pretexto para preservar a forma aparente da lei do Sabath, eles foram condenados  porque o espírito da lei - ficar afastado aos sábados das coisas mundanas para adorar a Deus - foi completamente perdido.

Uma outra referência no Alcorão ao subterfúgio religioso inventado por algumas pessoas para atender seus interesses pessoais, é o da antecipação de um mês sagrado feita pelos árabes pagãos (9:36-7). Eles eram obrigados, por suas tradições religiosas, a guardar a santidade  de quatro meses e suspender qualquer tipo de hostilidade entre eles. Esta exigência tinha por objetivo permitir que peregrinos de toda Arábia pudessem visitar a Casa de Deus, em Makka. No entanto, uma vez que o calendário era baseado no cálculo lunar, era necessário a mudança dos meses de uma estação para a outra. Isto contrariava os interesses dos negociantes de Makka porque os peregrinos eram uma fonte importante de lucro para eles. Assim, eles introduziram um 13o. mês, chamado Kabisah, depois de cada três anos, para garantir que os meses não caíssem em estações diferentes nos diferentes anos. Em resumo, em lugar de rejeitarem abertamente   as disposição dos meses lunares, eles imaginaram uma saída inteligente, ao mesmo tempo em que mantinham a forma aparente da lei. O Alcorão, no entanto, condenou toda a prática, chamando de "excesso de incredulidade" (9:37). 

A razão pela qual tais subterfúgios foram condenados pelo Alcorão como excesso de incredulidade é que, enquanto uma descrença simples é uma rejeição da fé, este tipo de subterfúgio é um estrategema   esperto para  frustrar a proposta da Lei Divina sem ser responsabilizado por esta rejeição. Em outras palavras, aquele que se entrega à tentativa de enganar a Deus finjindo que segue a forma aparente, na verdade, engana o espírito real da lei.

Na História muçulmana teve muitos exemplos onde recorreu-se a subterfúgios religiosos para manter a forma legal das injunções, enquanto frustrava o espírito real. Por exemplo, diz-se que um indivíduo era tão versado na lei religiosa que ele costumava transferir sua fortuna para o nome de sua mulher após 11 meses e depois retornava para o seu nome pelo mesmo prazo, para escapar da obrigação de pagar o zakat religioso anual sobre sua fortuna. Na verdade, o zakat é, do ponto de vista legal, exigível anualmente sobre os bens que a pessoa possui. Mas, esta é apenas uma condição legal. O verdadeiro objetivo   que Allah, o Todo-Poderoso, quer alcançar através desta imposição, é a melhoria das condições do pobre e o sacrifício material em nome de Allah pelo contribuinte. O indivíduo referido conseguiu frustrar ambos os propósitos, embora aos olhos da lei humana ele não fosse culpado.

A questão do espírito da lei foi empregada pelos juristas muçulmanos para legislar em áreas que não tinham sido tratadas no Alcorão e na Sunnah. O processo de ijtihad baseado na analogia (qiyas) emprega este princípio. Ele compreende a observação da base real de uma injunção islâmica e descobre se esta mesma base está presente em uma outra situação. Se, na opinião do jurista, a base da injunção original for semelhante a outra, o juiz afirmará, com base na qiyas,  que o mesmo veredito é verdadeiro para ambas.

Não há uma concordância geral em relação ás bases ('Illal) de muitas injunções islâmicas. No entanto, é geralmente aceito que pode haver mais de uma base para um veredito islâmico. A única razão que é considerada a base predominante de uma injunção relevante é chamada de Illah, enquanto uma menos importante é chamada hikmah, no entanto, illah e hikmah são conceitos que se fundamentam no espírito da lei. É o espírito verdadeiro da injunção que se pretende pegar, e assim, outras áreas da atividade humana foram trazidas para dentro dos limites da lei islâmica.

Existe uma diferença de opinião de consequências importantes entre as quatro primeiras escolas de jurisprudência islâmica, em relação ao espírito das leis. Os malikitas e os hambalitas determinam a validade ou a invalidade de um contrato, afora os fatores óbvios, tendo em vista se eles são inspirados por motivos adequados ou não, apesar de sua aparente legitimidade. Por outro lado, os hanafitas e, num grau menor, os shafiitas, consideram que não é função das cortes saber o que está por trás de transações genuínas ou descobrir sua verdadeira inspiração. A consequência óbvia deste último princípio foi que uma série de estratagemas legais foram desenvolvidos e permitiram que o espírito da lei islâmica fosse desprezado não obstante a adesão à forma aparente em terras onde o fiqh tinha mais influência.

Na opinião deste escritor, nossos exegetas precisam se afastar desta abordagem. O espírito e a forma de uma diretriz são igualmente importantes e cada um deve receber o peso que merece.

Por Dr. Khalid Zaheer

Fonte: sbmrj.org.br

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