Muhammad como Líder

Talvez a principal qualidade essencial à liderança seja a capacidade de a pessoa perceber e avaliar corretamente todos os fatores de uma determinada situação, decidir quanto ao objetivo desejável,projetar a melhor estratégia, para a execução desta e convencer os demais participantes da  viabilidade do esquema projetado e levá-los a integrá-lo com a mais decidida vontade de que sejam capazes.

Mohammad possuía essa qualidade no seu mais alto grau. Não fosse o Islam, ele ainda assim teria sido o estadista mais capaz que Makka jamais conhecera. O Islam alongou a sua visão universalista como um novo objetivo, e expandiu o âmbito da liderança a todo o mundo.

Um caso isolado da primeira sunna do Profeta comprova as suas qualidades de liderança. Enquanto os maquenses reconstruíam a Caaba, depois de uma inundação que fez rachar as suas paredes, os chefes tribais disputavam entre si a honra de colocar a pedra fundamental. Esta era a Pedra Negra, que os maquenses haviam venerado, por gerações seguidas. Como todos os chefes estivessem envolvidos na disputa, a sugestão de Abu Umaya de que eles se comprometessem, todos, a aceitar o arbítrio da primeira pessoa que viesse ao lugar, foi aceita, mas com certa apreensão. Aconteceu de a primeira pessoa a surgir ser Mohammad, e eles se sentiram seguros de que a decisão dele não seria parcial. Encarregado da tarefa, Mohammad resolveu fazer rolar a Pedra Negra para cima de um pano, fazendo com que cada um dos chefes segurasse em uma ponta do mesmo, e assim todos carregassem a pedra para o seu lugar. Todos os chefes ficaram satisfeitos e convictos de que a honra também lhes tinha pertencido, não menos do que a qualquer outro. Todos ficaram agradecidos a Mohammad, que transformara uma situação ameaçadora em uma ocasião de alegria geral.

A mesma percepção genial de Mohammad se fez presente, quando da sua chegada a Madina. Os muçulmanos deram-lhe calorosas boas-vindas. Cada um almejava a honra de receber Mohammad em sua casa; e com esta finalidade, os chefes competiam entre si. O Profeta disse que ele não tomaria nenhuma decisão; ao invés disso, ele ficaria onde o seu camelo parasse. Após vaguear pelas ruas de Madina por algum tempo, o camelo parou em um terreno vazio, que pertencia a Sahl e a Suhail, os filhos de 'Amr. O Profeta pagou pela terra e nela construiu a sua primeira mesquita.

Do mesmo modo que ele não favorecia qualquer chefe ou seção da comunidade em detrimento do outro(a), Mohammad tinha, também, o cuidado de não reivindicar qualquer privilégio para si próprio. Ele se considerava um qualquer, entre os seus pares. Quando se aproximava a hora das refeições, durante a marcha em uma campanha, os seus companheiros declararam que iam preparar a comida. Distribuíram as tarefas entre eles, não deixando nada para o Profeta fazer. Observando que eles se haviam esquecido da necessidade de alguém apanhar lenha para o fogo – a tarefa mais dura e menos agradável – Mohammad disse: "E eu apanharei a lenha." A opinião dos subordinados era que o chefe deveria ser sempre digno do seu amor e da sua estima. Isto ele manifestou na tradição (hadice), que conta: "A oração do imam (líder), que é odiado por sua gente, é inaceitável por Deus" e "quem quer que assuma a liderança de um povo contra a sua vontade, a sua oração jamais irá além das suas orelhas." Nem a sua condição de profeta, nem a de chefe de Estado impediam Mohammad de tratar aos outros como iguais. Aliás, foi ele que ensinou os muçulmanos a fazer os seus servos e escravos comerem à mesma mesa que eles, a dar-lhes as mesmas roupas para vestir, a chamá-los por "filhos", ao invés de "servos" ou "escravos", e a serem chamados, por eles, de "tios", ao invés de "senhores". Certo dia, na praça do mercado, um mercador, ao qual Mohammad dava preferência, pegou a sua mão e a beijou. Mohammad retirou a sua mão e disse: "Isto é o que fazem os persas ao rei deles. Eu não sou um rei, e tu não és um persa." Do mesmo modo, quando os muçulmanos foram convocados para cavar um fosso em frente ao ponto mais vulnerável de Madina, como defesa contra um ataque de cavalaria, Mohammad insistiu em juntar-se a eles, com as suas próprias mãos. Muito antes da sua condição de profeta acontecer, essa qualidade fizera-o ser amado por seus companheiros e conhecidos. Zaid era um escravo adulto, trazido para Makka para ser vendido. Khadija o comprou e deu de presente a Mohammad, que prontamente o alforriou e o tornou seu assistente. Não demorou a aparecer o pai de Zaid para resgatá-lo; mas, encontrando-o já liberto, ofereceu-se para levá-lo de volta para casa. Mohammad deu a Zaid liberdade para escolher se ficava ou voltava para a sua casa e a família, mas este preferiu ficar com ele.

Para sua segurança pessoal, em Makka, Mohammad dependia das lealdades tribais. A sua tribo, os Bani Háchim, era capaz de o proteger durante muitos anos contra o resto de Makka. Esta proteção não era sem preço em vituperação e ridículo, em prejuízos e boicote social e econômico. A oposição de Coraix ganhava ímpeto, enquanto os muçulmanos ainda eram poucos e fracos ali. Não demorou, e a situação se tornou crítica; e o chefe tribal de Mohammad teve de pedir ao seu sobrinho - Mohammad - para desistir da causa. Mas Mohammad se recusou, jurando, pela sua própria vida, continuar sua luta até o fim. Apesar do tio o ter apoiado e rejeitado o ultimatum de Makka, Mohammad sabia que a hora da decisão estava próxima, e que os homens de Banu Háchim não seriam páreo para todos os maquenses, que agora se uniam contra eles, por sua causa. Foi a sua pre-ciência dessa situação que o levou a entrar em negociações e a firmar dois tratados sucessivos com os muçulmanos de Madina. Assim ele substituiria a relação tribal, caso os Banu Háchim retirassem o seu apoio, e reforçaria as suas forças contra os maquenses com as de Madina, certo de que a sua premonição estava correta e de que a sua estratégia era muito oporturna. Ambas eram componentes preciosos da sua liderança.

Ao chegar a Madina, no verão do ano de 622, Mohammad reconciliou as duas principais tribos da cidade e as fundiu, para formarem o primeiro núcleo político islâmico. A sua alienação e mútuo antagonismo eram tradicionais. Mohammad substituiu o ódio pelo respeito, amor e estima; a malquerença pela solidariedade; e a separação pela unidade. Em seguida, fundiu os madinenses (al Ansar) com os maquenses (al Muhajirun), que haviam vindo para Madina, despossuídos e só com as roupas do corpo. Cada casa de Madina correspondeu ao apelo com a abertura do seu lar a algum indivíduo ou alguma família maquense. Era a primeira vez que chefes e aristocratas, plebeus e escravos, ricos e pobres, cidadãos e estrangeiros, se aliavam para formarem uma nova sociedade, na qual o liame da fé transcendia as diferenças de nascimento e de história; onde a lealdade religiosa criava para si uma unidade orgânica sócio-econômica, política e militar. A união não estava restrita aos muçulmanos. Mohammad persuadiu os judeus a se juntarem a eles, e se tornaram membros integrantes dessa nova ordem social. Eles também tinham divergências entre si, bem como os árabes e muçulmanos madinenses. Eles eram dependentes das duas tribos dominantes, Aws e Khazraj, e estavam envolvidos com estes últimos, em todas as suas disputas e conflitos. A liderança de Mohammad era suficientemente forte para reunir todos eles sob o mesmo teto e fundi-los na primeira sociedade ecumênica e pluralista. Para formalizar a união deles e registrar tal acordo, Mohammad ditou o Tratado de Madina – a primeira constituição escrita da história humana. A promulgação dessa constituição inaugurou o primeiro Estado Islâmico, a primeira ordem mundial multireligiosa.1

Mohammad gerou tudo isso com sua própria sabedoria e poder de persuasão. Ele não tinha nenhum poder para coagir quem quer que fosse. Ele sabia que uma união que não fosse realmente desejada pelos seus membros era inviável, assim como o governante indesejado por seu povo nunca seria bem-sucedido. A nova sociedade se baseou na chura (consulta entre os pares, com vistas a alcançar o consenso, tal como descrito no Alcorão 42:38), bem como em alguns princípios que continuam a servir como normas de atividade política ao longo da história muçulmana. Entre outros, esses princípios incluem: A ordem social é absolutamente necessária. "Se apenas três de vós saírem em uma missão, deverão designar um amir chefe, um primeiro sucessor e um segundo sucessor".² Esse é um antigo princípio mesopotâmico, que via a ordem social como uma condição imprescindível à vida; um grupo sem líder é como um rebanho de ovelhas sem pastor. A umma era um povo com uma causa, uma missão a ser realizada no espaço e no tempo e, por isso, devia ser organizada. "Mesmo um imam injusto", dizia Mohammad, "é melhor do que o caos ou nenhuma ordem… onde qualquer um pode tomar a lei nas próprias mãos… Naturalmente, nenhum desses casos, como tal, é feliz; e, no entanto, um governo que mantém a ordem realiza, pelo menos, um bem essencial para a sociedade". O melhor mesmo é o governo que proporciona tanto a ordem como a justiça. Em um Estado desses, a obediência ao governante é um dever religioso e civil, enquanto o que for ordenado não vier a conflitar com a lei de Deus. Sempre que o Estado se afasta da lei de Deus, não há necessidade de qualquer obediência. Devido ao potencial de abuso dessa condição, Mohammad alertou para que se prevenissem cuidadosamente contra tal situação. Jamais devemos questionar a legitimidade das ações de um governo, dizia ele, a não ser que elas sejam claramente kufran bawahan fihi burhan (um afastamento da lei de Deus, comprovado por evidências inquestionáveis).³ Dentro de tais limitações, todo muçulmano ou cidadão é um pastor responsável por seu rebanho, governante do seu Estado, tanto quanto chefe da sua casa, toda muçulmana é mãe dos seus filhos e dona do seu lar, e todo criado é empregado, para cuidar dos interesses do seu empregador.4 Além de orientar o navio do Estado para as metas que o Islam prescreveu para ele, o dever primaz da liderança é cuidar dos fracos, dos pobres e de todos aqueles que precisam ajudar a cumprir as metas supremas e pessoais. "Aqueles líderes que cumprem essa função", proclamava Mohammad, "tornam-se merecedores da imunidade contra o Fogo (do inferno)". Nem a história antiga tinha respeito pelas sociedades que não se preocupavam com os fracos da sua comunidade. "Na verdade", dizia o Profeta, "Deus proporcionará, ajuda e concederá a vitória, na medida em que as sociedades demonstrarem a sua solidariedade aos seus fracos… Qualquer um que não tiver misericórdia para com os pequenos, entre nós, e não respeitar os grandes, não pertencerá a nós". Acima de tudo, a ordem social deve ser justa para com todos. Respondermos ao clamor das vítimas de injustiças – sejam elas muçulmanas ou não – é de suma importância. "Nada isola esse clamor dos ouvidos de Deus", afirmava o Profeta.

A liderança da ordem social deve organizar a sua administração, de modo a otimizar o seu serviço ao povo e a minimizar o seu custo. Para atingir esse objetivo, o critério de contratação deve ser a competência. "Nomear qualquer líder para qualquer serviço público, por mais insignificante que seja, por qualquer outro critério", declarou o Profeta, "é um ato de traição a Deus, ao Seu Profeta e à umma". O governante deve outorgar a cada um a responsabilidade pelos seus atos e deixar a prestação de contas das intenções a Deus. Mas se ele começar a suspeitar das pessoas ou as induzir a suspeitarem umas das outras, a corrupção se estenderá naquele Estado e começará a arruiná-lo. O governante deve sempre almejar a reconciliação e a unidade. Quando surgir uma divergência entre duas facções, ele deverá conduzi-las a um acordo justo; e se alguém se rebelar contra tal acordo, a umma, como um todo, deverá opor-se aos rebeldes e fazê-los recobrar o bom senso.5 A justiça é, com toda a certeza, o principal ideal social do Islam. A indignação que a sua violação gera no muçulmano e o entusiasmo pela sua defesa e preservação desconhecem quaisquer limites, no coração comprometido ao tauhid. Entretanto, como qualquer virtude, também a busca da justiça pode-se tornar opressiva. É por isso que não nos devemos omitir de temperar essa busca com compaixão e misericórdia. O entendimento disto, junto com a sua sensibilidade normal para com a necessidade dos famintos, dos fracos e dos oprimidos, levou Mohammad a declarar: "Quando criou a humanidade, Deus comprometeu-Se em que sempre seria misericordioso. "Minha misericórdia é mais forte que a Minha ira" – disse Deus. Quanto à sua própria governança, Mohammad disse: "Deus não me enviou para ser um zelote, como governante, nem um fanático, mas sim um educador e guia, que tornasse a vida mais fácil para os seres humanos".

Todos os fatos que descrevemos da sunna, concretizam os valores que se relacionam com a ética social do Islam. Esta foi a realização do período maquense. A ética social externa do Islam, entretanto, não poderia vir à tona, senão depois da Hégira em Madina e do estabelecimento da umma como estado soberano. Antes desse acontecimento, a umma existia potencialmente. Mesmo assim, ela estava sujeita a perseguição tal, que lhe era impossível exercer as prerrogativas da umma. Conseqüentemente, a primeira preocupação do Profeta, depois da Hégira, tão logo se estabeleceu a ordem interna e todos estavam em suas posições, foi a de voltar-se para o mundo externo. Obviamente, o problema externo mais imediato era a hostilidade combativa de Makka, cuja liderança havia decidido assassinar Mohammad na véspera da Hégira. Naquela noite, informado do seu plano, o Profeta decidiu distrair a sua atenção colocando Áli, seu primo, em sua cama e o cobrindo com o seu próprio manto verde. Mohammad e Abu Bakr escaparam, na escuridão da noite. Os maquenses arrombaram a porta, puxaram o manto, com as espadas prontas, mas aí encontraram Áli, em lugar do homem que procuravam.

A maioria dos muçulmanos já havia, àquela altura, deixado Makka para irem a Madina. Eles haviam deixado para trás parentes e bens. Os maquenses passaram a incomodar aqueles, confiscando-lhes as propriedades. Os emigrantes muçulmanos de Makka ficaram desprovidos e tiveram de depender da hospitalidade dos seus anfitriões. Era natural que se cogitassem modos de se vingarem dos maquenses. As caravanas de Makka passavam por Madina, transportando mercadorias para o norte e para o sul. Os muçulmanos procuraram apoderar-se de tudo o que puderam, e Makka se mobilizou para a guerra, resultando daí que os muçulmanos foram arrastados para o seu primeiro confronto militar com os seus inimigos. Trezentos muçulmanos, chefiados pelo Profeta, encontraram-se com um exército maquense, de mil soldados, em Badr. Ambos os lados pensaram que o encontro seria definitivamente decisivo. Enquanto os maquenses preparavam a nata do seu exército para a batalha, o Profeta levantou a moral dos seus seguidores ao nível mais elevado possível. Ele orou em voz alta a Deus, dizendo: "Ó Deus, eis que vem Makka para arrasar com o Teu Profeta e erradicar os Teus servos. Se eles ganharem hoje, não serás mais adorado nestas terras. Concede-nos a Tua ajuda e a vitória. Só Tu és o nosso Senhor, nossa Ajuda e nosso Socorro". Então, voltou-se para os muçulmanos e lhes disse que Deus atenderia a sua prece e lhes concederia a vitória; que todo aquele que tombasse, no combate que se seguiria, alcançaria o Paraíso e teria a vida eterna.6

A estratégia militar do Profeta foi questionada pelos seus seguidores, quando ele declarou que, apesar da causa ser divina, a estratégia seria humana. Em consultas uns com os outros, os muçulmanos decidiram-se por uma distribuição diferente das suas forças. A batalha durou a tarde toda, e as perdas foram pesadas, para ambos os lados. Os muçulmanos saíram vitoriosos. Na verdade, foi uma infusão milagrosa, de energia incomum, que fez os muçulmanos lutarem tão valentemente, a ponto de derrotarem os seus inimigos, apesar da superioridade numérica e de armamento deles. Entretanto, os muçulmanos estavam exaustos e não tiveram forças para consolidar a sua vitória com uma perseguição aos maquenses. Voltaram para Madina, satisfeitos com a vitória naquela batalha, senão na guerra. Um ano mais tarde, os maquenses voltaram para um novo confronto, que teve lugar fora de Madina, ao pé do Monte Uhud. Desta vez, os muçulmanos perderam a batalha, mas infligiram pesadas perdas aos maquenses, que também não puderam dar continuidade à sua vitória, com a invasão e ocupação de Madina. Desesperados, bem como mais escolados pelos seus erros, os maquenses lançaram uma última tentativa contra Mohammad e o seu movimento. Desta vez, eles mobilizaram praticamente toda a Arábia e chegaram às portas de Madina para aniquilarem o Estado islâmico, erradicarem os muçulmanos e acabarem com o seu flagelo, de uma vez por todas. Com números tão enormemente superiores, os muçulmanos não poderiam defrontar-se, e por isso permaneceram dentro da sua cidade. Apressadamente, tiveram de cavar um fosso, em frente a um dos lados mais vulneráveis da cidade, o que deu o nome a essa batalha.7 Felizmente para os muçulmanos, eles não tiveram de lutar. Uma terrível tempestade de areia assolou a região. Ela não afetou os muçulmanos, que estavam dentro dos seus lares e fortalezas; mas provocou o caos entre os seus inimigos, que estavam acampados em tendas, ao longo de um amplo arco, no flanco sul de Madina, bem no caminho da tempestade. Esta arrancou as suas tendas, dispersou e matou a maioria das suas montarias e destruíu os seus suprimentos. Aqueles que conseguiram escapar, fugiram e fizeram com que a campanha fosse em vão.

A constituição do Estado Islâmico (o Tratado de Madina) respeitava os judeus, como uma comunidade autônoma, dentro do estado. Ela conferia à corte rabínica autoridade plena para adjudicar e resolver todos os assuntos dos judeus. Desde as suas derrotas e dispersões pelos romanos, esta era a primeira vez que a existência comunitária judaica e a lei da Tora eram reconhecidas como legítimas, por um Estado. Mesmo assim, a fidelidade dos judeus ao Estado Islâmico oscilava. Inicialmente, o Profeta fez-lhes uma advertência, depois baniu alguns deles, então baniu mais outros e confiscou as suas propriedades. Na Batalha do Fosso, eles tiveram mais uma vez um papel traidor; mas este foi frustrado pelo colapso do inimigo, diante da tempestade de areia. Desta vez, o Profeta se viu obrigado a executar alguns e a expulsar os demais de Madina. Do seu exílio, em Khaibar, eles continuaram a conspirar contra o Estado Islâmico. Não tardou que fosse necessária uma expedição para os desalojar e expulsar de vez da Península Arábica. O seu destino, na Bizâncio cristã não foi diferente. Entretanto, quando o Crescente Fértil foi conquistado pelas forças do Islam, novamente lhes foi oferecido o mesmo status que lhes havia sido conferido no Tratado de Madina, sem ser levado em conta o seu comportamento anterior com os muçulmanos na Península Arábica.

Alguns meses após a Batalha do Fosso, por ocasião da peregrinação (hajj), o Profeta decidiu realizar o ritual com os seus companheiros. Ele convidou todas as tribos árabes a se juntarem a ele, em parte para se prestar tributo à Caaba e à tradição abraâmica que ela representava, e em parte para negar a alegação maquense de que os muçulmanos não respeitavam nem Makka, nem a sua tradição. Ao chegarem aos arredores de Makka, os maquenses surgiram com força total, para defender a sua cidade contra o que eles imaginavam ser uma invasão muçulmana. O Profeta havia antes declarado a intenção religiosa da expedição; mas os maquenses não confiavam na sua declaração. Eles temiam que, uma vez dentro da cidade, os muçulmanos a tomassem. Em razão disso, decretaram que não seria permitida a entrada dos muçulmanos e que não haveria nenhuma peregrinação. As circunstâncias exigiram que se entabulassem negociações entre as duas partes, que alcançaram um entendimento, que passou a ser conhecido como o Tratado de Hudaibiya.

Os termos do tratado eram humilhantes para os muçulmanos. Primeiro, os muçulmanos não poderiam realizar a peregrinação naquele ano, mas poderiam voltar para fazê-lo no ano seguinte, desde que viessem desarmados e não permanecessem na cidade mais do que três dias. Segundo, qualquer maquense que se juntasse a eles deveria ser devolvido a Makka, mas qualquer muçulmano que desertasse em favor de Makka não seria devolvido a Madina. Terceiro, os árabes de fora de Makka que quisessem, poderiam juntar-se à cidade, e os que quisessem, poderiam juntar-se a Mohammad. Quarto, nenhum dos dois lados atacaria o outro nos dez anos seguintes. O Profeta concordou com estes termos. Ele calculava que, uma vez que o Islam era uma questão de convicção e de fé pessoal, o convertido maquense não cometeria apostasia, mesmo que fosse compelido a residir em Makka; que a presença de apóstatas muçulmanos em Madina seria inútil e até prejudicial. Ele também compreendeu que as tribos eram entidades independentes. Se elas quisessem aliar-se a Makka, ninguém poderia impedi-las pela força; mas a possibilidade de persuadi-las a se juntarem às hostes do Islam poderia provar-se uma clara vantagem. Quanto aos dez anos de paz, o Profeta considerou-os uma grande vantagem, porque a paz era exatamente do que ele precisava para levar a mensagem do Islam a toda a Arábia. Ele também concordou em adiar a peregrinação por um ano, para que pudesse realizá-la numa atmosfera pacífica, na qual todos os árabes se congregariam e seriam informados da mensagem do Islam em primeira mão. Ele concordava, portanto, em assinar esse tratado. Mas não concordavam com isso os seus companheiros mais antigos, que viam o tratado como um insulto, merecedor de uma reação violenta. Aquilo era uma ameaça de irrupção de uma divisão e rebeldia nas hostes muçulmanas. Além do mais, o passado traiçoeiro de Makka não dava margem para a confiança dos muçulmanos. Os maquenses retiveram em demasia o representante muçulmano, Otman Ibn Affan, e se espalhou o boato de que eles o haviam morto. E se eles tomassem os muçulmanos de surpresa naquele mesmo instante e começassem uma batalha, cujo momento, lugar e condições eram da sua escolha exclusiva? Como poderiam confiar em que eles fizessem um tratado de paz?

Enquanto os representantes de ambos os campos aguardavam, o Profeta reuniu os seus companheiros mais intimos ao pé de uma árvore e sentou-se para debater a questão com eles. Ele lhes pediu para confiar em Deus, nele e na paz. Ao mesmo tempo, ele lhes pediu para estarem prontos para lutar, no caso de os maquenses trapacearem. Finalmente, Mohammad reafirmou a sua autoridade como Profeta e lhes lembrou o seu pacto de obedecerem a ele em todos os assuntos, incluindo no tocante ao sacrifício das suas próprias vidas. Como em todas as outras crises, o primeiro a renovar o seu juramento de fidelidade foi Abu Bakr, o qual também exortou Ômar Ibn Khattab a não renegar o dele, aquele que ele fizera quando ingressara nas hostes do Islam. Diante disso, Ômar reafirmou a sua obediência, também, e os demais companheiros seguiram o seu exemplo. Tendo restaurado a unidade no seu campo, com este novo acordo – mais tarde chamado de Bay'at Ridwan ou o Tratado do Contentamento –, o Profeta assinou o tratado com Makka. Os representantes voltaram em segurança aos seus campos, e os muçulmanos retomaram o caminho de volta para Madina.

A caminho de casa, foi revelada a surata Al Fath, que começa com o seguinte versículo: "Em verdade, temos-te predestinado um evidente triunfo, para que Deus perdoe as tuas faltas, passadas e futuras, agraciando-te e guiando-te pela senda reta."8 Esta revelação dissipou quaisquer dúvidas que ainda restavam nas mentes dos muçulmanos sobre a validade do Tratado de Hudaibiya. E os anos que se seguiram provaram que eles estavam certos.

Pela primeira vez, o Islam, o seu Profeta, e a sua umma, como Estado soberano, não eram mais vistos, nem pelos maquenses, nem pelos seus aliados, como desprezíveis ou fugitivos da tribo de Coraix, mas como iguais, com um título reconhecido, com legitimidade e direitos e como uma entidade política tão eminente quanto o de Makka. Segundo, o tratado reconhecera o direito de acesso dos muçulmanos à Caaba e o direito de realizarem a peregrinação e rezarem, dentro do santuário de Makka. Terceiro, a paz permitiu a Mohammad enviar os seus mensageiros às tribos da Arábia, sem recear pelas suas vidas. Em dois anos de missão Islâmica na Arábia, após o Tratado de Hudaibiya, foi convertida quase a maioria das tribos. Quando Mohammad conclamou os muçulmanos para a marcha sobre Makka, em seguida à violação, por esta, do Tratado de Hudaibiya, a multidão que atendeu ao chamado era tal, que Makka se viu sobrepujada, sem combate. A paz, proporcionada por aquele tratado, dera a Mohammad confiança para enviar representantes até para fora da Arábia, para a Abissínia, o Egito, Bizâncio, a Pérsia e para as tribos às margens da Península. Sem Hudaibiya, a conquista de Makka não teria ocorrido tão rapidamente, nem teria sido tão exangue.

Ao instituir a paz, o Tratado de Hudaibiya permitiu aos muçulmanos apresentarem o Islam, sem que este fosse visto como um ameaça. Uma vez que estavam descontadas a guerra e as hostilidades, o conflito se transformou em ideacional, colocado diante da razão e da consciência, a cada pessoa como indivíduo. Deus é Deus ou não? Se Ele é o Único Criador, não deveria Ele ser o único Senhor ou Juiz? Não deveriam, então, a adoração e o culto, a obediência e o serviço, a lealdade e a fé pertencer somente a Ele? Se a justiça, a misericórdia e a moderação são virtudes, não são mandamentos de Deus que, portanto, devem ser obedecidas, sob quaisquer circunstâncias? E se a eloqüência literária é o valor mais nobre e mais importante, não é o Alcorão tão sublime, que só pode ser revelação de Deus, ser uma obra sobrenatural do Autor divino? Esta lógica calma do Islam convenceu rapidamente os árabes da Península, do mesmo modo que viria a convencer os milhões de outros, aos quais seria apresentada mais tarde. As fileiras da umma engrossavam, com os novos recrutas, a cada dia, e logo o Islam tornou-se a voz predominante, na maior parte da Arábia.

Abu Basir, um maquense, converteu-se ao Islam e fugiu para Madina. O povo de Makka pediu a sua extradição, de acordo com os termos do tratado. Mohammad chamou Abu Basir e lhe disse: "Nós muçulmanos não enganamos. Juramos devolver os fugitivos, e portanto, devemos devolver-te a Makka. Sê forte e volta. Deus cuidará de ti". Abu Basir entregou-se ao representante de Makka e foi com ele. A caminho para Makka, Abu Basir lutou com o seu captor, tomou a sua espada, matou-o e fugiu. O número de conversões dos maquenses ao Islam continuou a crescer. Uma vez que permanecendo em Makka expunham as suas vidas ao risco, eles fugiam para o deserto e ficavam esperando, de tocaia, a passagem de caravanas de Makka. Eles interromperam de tal modo o tráfego, que Makka, vendo-se incapaz de os conter, pediu ao Profeta que os termos do tratado fossem revistos, de modo que os convertidos maquenses ao Islam ficassem sujeitos à responsabilidade de Mohammad, o qual teria de contê-los, de acordo com tais termos. Que irônico o fato de que a condição do tratado que os muçulmanos consideraram, na época, humilhante e recusável, viesse a ser tão vantajosa para eles e prejudicial a Makka. Os maquenses enviaram Suhail Ibn 'Amr, o delegado que havia redigido o termo original, para pedir a sua revisão.

Logo chegou a época da peregrinação do ano seguinte, e Mohammad chamou todos os muçulmanos a fazerem o hajj com ele. Milhares convergiram e se aprontaram para a viagem. Mohammad ensinou-os a se vestirem para a peregrinação e a entrarem em Makka, vestidos com o ihram, que consiste de duas peças de tecido brancas e sem costura. O seu cântico uníssono, entoando Labbaika Allahum-ma Labbaik (Ao Teu chamado ó Deus, estou atendendo), deve ter sido uma visão surpreendente, para todos os árabes que o ouviram. Ele gerou um profundo respeito por eles e reverência pela sua nova religião, o Islam. Os maquenses evacuaram a sua cidade, e colocaram-se sobre uma montanha, que permitia uma visão completa do santuário. À medida que os muçulmanos davam volta à Caaba, Mohammad lhes ensinava a entoar:

Allahu Akbar, Allahu Akbar, Allahu Akbar
(Deus é o Maior, Deus é o Maior, Deus é o Maior)

Allahu Akbar, Allahu Akbar, Wa Lillahil-hamd
(Deus é o maior, Deus é o maior, a Deus pertence o louvor)

Allahu Akbaru Kabira, wal hamdu lillahi kacira
(Deus é o maior, realmente o Maior; a Deus pertence todo o louvor)

Wa subhana Allahu bukratan wa asila
(A Deus pertence a glória de cada amanhecer e anoitecer)

La ilaha illa Allahu wahdah
(Não existe outra divindade além de Deus, Único)

Sadaca wa'dah, wa a'azza jundah
(Sua promessa era verdadeira; Ele reforçou o Seu exército)

Wa hazama al ahzaba wahdah
(E somente Ele derrotou os partidos)

La ilaha illa Allah wa la na'budu illa iyyah
(Não há outra divindade além de Deus. Nós não adoraremos ninguém além d'Ele)

Mukhlicina Lahuddina walaw kariha al mushrikun
(Seremos sinceros em nossa religião para com Ele, por mais que se nos oponham os politeístas).

Esta confissão de fé era tão sincera, quanto atemorizante e fascinante. Seu tom desafiador inspirava pavor no coração do inimigo, mesmo sem a demonstração dos armamentos; mesmo assim, comovia aqueles mesmos corações e os fazia concordar com ela, justamente pela sua sinceridade absoluta, pela sua firme decisão de adorarem somente a um único Deus, pela sua reafirmação e confiança em que Deus daria ao Islam a vitória final. Do mesmo modo, o ritual do hajj confirmava o elevado respeito que o muçulmano tinha pela Caaba, por Makka e pela sua tradição abraâmica. Tudo isto tornava o Islam irresistível, pelo menos para os dois maiores generais de Makka, Khalid Ibn al Walid e 'Amr Ibn al 'As, que abandonaram os seus colegas maquenses e à sua frente, adiantaram-se, para proclamar a sua conversão ao Islam. Mohammad recebeu-os de braços abertos e os convidou a se juntarem à cerimônia.

Foi alguns meses depois dessa peregrinação que uma tribo aliada de Makka agrediu um aliado de Madina. Os muçulmanos pediram aos maquenses para cumprirem a sua obrigação, estabelecida no Tratado de Hudaibiya, mas os maquenses se recusaram a fazê-lo. Os muçulmanos se mobilizaram e lhes declararam guerra. Dez mil ou mais cavaleiros e mais alguns milhares de cameleiros e a infantaria, atrás destes, puseram-se diante das portas de Makka em poucos dias, prontos a entregar as suas vidas, por ordem do Profeta. Sobrepujados, os maquenses se renderam. O Profeta entrou na cidade e foi direto à Caaba. Com as suas próprias mãos ele destruíu os ídolos, removeu os entulhos do recinto sagrado, limpou e reconsagrou a Caaba ao Deus único, Senhor e Criador de todos. Enquanto trabalhava, ele recitava: "Chegou a verdade, e a falsidade desvaneceu-se, porque a falsidade é pouco durável".9 Os líderes de Makka ficaram ali perto, observando e tremendo de medo, por suas vidas. Então, o Profeta mandou-os aproximar-se, para ouvirem o seu veredito. Eles se adiantaram e se ajoelharam diante dele. O Profeta, então, disse: "Levantai-vos e ide! estais livres", concedendo o seu perdão geral a eles e a todos os maquenses. Esta magnanimidade de Mohammad, no momento do seu maior triunfo, dissipou a última resistência dos seus corações. Primeiro os líderes e, em seguida, colunas e filas inteiras foram proclamar a sua conversão ao Islam. Makka tornou-se uma cidade muçulmana; seu santuário tornou-se o lugar mais sagrado do Islam, e o seu povo tornou-se um dos seus maiores defensores.

Finalmente, a sunna era a concretização da relevância do Islam para a ordem e as relações internacionais. O tratato de Madina havia reconhecido os judeus como uma comunidade e lhes tinha concedido autonomia constitucional, para organizarem as suas vidas como lhes ditava a Tora e como ela era interpretada pelas suas próprias cortes judiciais e por outras instituições. Essa provisão constitucional não mudou quando alguns judeus cometeram atos de traição contra o Estado Islâmico, porque o Islam rejeita qualquer teoria de culpa vicária. Os atos de traição foram os atos daqueles que os praticaram e não dos seus descendentes. A mesma provisão foi estendida pelo Profeta aos cristãos de Najran. Estes haviam enviado uma delegação a Madina, buscando uma confirmação do seu status e inquirindo sobre o Islam. A delegação cristã foi recebida e entretida pelo Profeta, que também lhe fez a apresentação do Islam. Alguns dos seus membros se converteram e se juntaram às fileiras da umma muçulmana. Aqueles que não se converteram, foram estabelecidos pelo Profeta como uma outra comunidade, dentro do Estado Islâmico e sob a sua constituição. Ele enviou os delegados de volta ao seu povo, no Iêmen, protegidos dos perigos da estrada por muçulmanos e acompanhados por Abu Ubaida, que ele nomeou representante do Estado, entre outros.

O Estado Islâmico, portanto, tornou-se uma ordem multireligiosa, por desejo e instituição do próprio Profeta, que assim uniu, em uma ordem de paz e legitimidade, muçulmanos, judeus e cristãos. Este pluralismo não era uma questão de cortesia, mas sim um artigo constitucional; não era uma questão de tolerância de costumes estrangeiros de alimentação, vestuário, ou música, mas de códigos completos de leis que governavam a vida das comunidades religiosas não-muçulmanas. O pluralismo do Estado Islâmico era um pluralismo de leis, uma inovação jamais vista alhures, em toda a história da humanidade. O Estado Islâmico de Madina era um microcosmo da ordem mundial por vir. O ato de inserir os cristãos de Najran na constituição viria a ser repetido por seus companheiros, a favor dos persas adeptos do zoroastrismo, e pelos sucessores destes, a favor dos hindus, dos budistas e de todas as outras religiões.

Depois da paz com Makka, Mohammad havia enviado delegações aos reis, ao redor da Arábia, convidando-os a se aliarem ao Islam. Se eles não aceitassem se converter, após ouvir a apresentação dos delegados, eram convidados a partilhar da Pax Islamica, a ordem de paz internacional, na qual as idéias deveriam ser livres para se desenvolverem e os homens livres para se convencerem e serem convencidos da verdade, preservando, ao mesmo tempo, intactas as suas instituições políticas, econômicas, sociais, culturais e até as militares. O Estado islâmico buscava a oportunidade para apresentar o Islam a todos os seres humanos, de todos os cantos, e honravam as suas decisões pessoais de aceitá-lo ou rejeitá-lo. O Islam não estava interessado em subjugá-los, nem em explorá-los, de qualquer forma que fosse. Ele buscava a promoção, não do seu próprio bem, mas do deles, como seres humanos iguais, como criaturas de Deus, tanto quanto os muçulmanos, possuidores do direito de ter, também, a revelação que lhes fora dada. A missão do Estado islâmico cingia-se à transmissão da mensagem de Deus. A decisão de aceitá-la ou rejeitá-la cabia somente ao homem, tal qual o dissera Deus (Alcorão 18:29). Mas nenhum poder, nenhuma instituição ou tradição pode impedir os homens de ouvirem e considerarem o chamado divino. Isto seria o mesmo que presumir serem eles incapazes de julgar por si mesmos, o que além de ser falso e injurioso, é uma espécie de tirania espiritual.

Eis porque os delegados do Profeta estavam instruídos para dizer aos reis e chefes que cada governante deve arcar com a responsabilidade do bem-estar espiritual dos seus súditos. O imperador de Bizâncio, o governante do Egito, e Negus, da Abissínia, responderam de maneira bondosa. O imperador da Pérsia e os chefes dos estados fantoches da Arábia do Norte rejeitaram o chamado, com desprezo e desafio. O governante de Dhat al Talh, vassalo de Bizâncio, matou os quinze companheiros do Profeta que foram enviados para apresentar o Islam, a ele e à sua gente. O governador de Basra, outro agente de Bizâncio, matou o delegado muçulmano, enquanto o ouvia relatar a sua mensagem. Alguns historiadores muçulmanos relataram que o próprio Imperador Heráclito deu ordem aos seus governadores provinciais para se mobilizarem e iniciarem a hostilidade.10 Esta reação de Bizâncio e dos seus estados satélites levou os muçulmanos a tentarem romper a autoridade que obstruía a proclamação da mensagem divina. As opções desses governantes desafiadores eram ainda mais limitadas pelos seus atos tolos. Os exércitos muçulmanos, que se reuniam às sua portas, ofereciam-lhes três possibilidades: a de aceitar o Islam; a de aceitar a ordem mundial do Islam, na qual eles continuariam a exisitir como uma comunidade constituinte, livre para exercer a sua religião, tendo garantidos os seus direitos humanos e jurídicos; ou então, a guerra. Quanto aos próprios muçulmanos, o seu espírito era exemplificado por 'Abdullah ibn Rawaha, um companheiro do Profeta, que detinha o comando do exército em Ma'an, a sudeste do Mar Morto. Antes de engalfinhar-se com o inimigo, ele dizia aos seus homens: "Irmãos! Aquilo que algumas pessoas temem pode acontecer a nós, e esta é a razão de nos encontrarmos aqui; precisamente, o martírio. Nós, muçulmanos, não combatemos nem com números, nem com armas. Nossa única força é a nossa fé, que Deus graciosamente nos concedeu. Levantai-vos para o combate e marchai para a frente! Uma das duas maiores graças será nossa: ou a vitória ou o martírio. Em qualquer dos casos, seremos os vencedores". Um espírito parecido movia os muçulmanos que enfrentavam o Império Persa. O supremo comandante persa, com roupas de grande resplandecência, revestidas de tanto ouro que mal ele podia-se mexer, mandou chamar o comandante muçulmano, que vestia a sua roupa normal do deserto, e disse: "O que é que trazes para nos combater aqui?", perguntou o persa. O comandante muçulmano respondeu:

"Para que os homens não possam mais adorar outros homens, mas oferecer a sua reverência ao Criador dos seres humanos; para cumprir esse objetivo, os nossos homens estão dispostos a morrer, com a mesma ânsia que os teus homens tem de viver". No décimo ano da Hégira (632 d.C.), o Profeta liderou uma procissão de mais de 100.000 muçulmanos, de Madina para Makka, em peregrinação. Essas milhares de pessoas vinham de todos os lados da Península, para acompanhar o Profeta, em seu hajj. Outros milhares foram-se juntando pelo caminho, e outro tanto havia ido diretamente para Makka. Nessa ocasião, o Profeta fez um sermão, que viria a ser o seu último. Nele, reassumiu a mensagem da qual ele fora divinamente nomeado guardião.

Montado no seu camelo, e com Rabi'ah Ibn Umaiya ao seu lado, em outro camelo, para repetir as suas palavras, de maneira que todos os ouvissem, o Profeta disse:

"Ó homens, ouvi bem as minhas palavras, pois eu não sei se nos encontraremos novamente, em ocasião igual. Até vos encontrardes com o vosso Senhor, a segurança das vossas vidas e dos vossos bens serão tão invioláveis, quanto o são este dia sagrado e este mês santo… Encontrareis deveras o vosso Senhor e Ele medirá os vossos atos. Aquele que estiver conservando algo que não seja seu deve devolvê-lo ao seu legítimo dono… Todo o juro está abolido; e todo o juro auferido está dispensado; somente o vosso capital vos pertence… Não praticareis, nem sofrereis qualquer injustiça ou iniqüi-dade… Deus ordenou que todos os juros devidos a 'Abbas Ibn 'Abd al Muttalib e ao seu clã (do qual Mohammad era herdeiro), nos dias pré-islâmicos, estão pagos… Ó homens, Satanás perdeu a esperança de ser adorado em vossa terra. Mesmo assim, ele ainda é capaz de determinar os menores dos vossos atos… Ó homens, tendes sobre as vossas mulheres, e as vossas mulheres direito, sobre vós, mais a vossa bondade… Tratai-as bem e sede bondosos com elas, pois elas são as vossas parceiras e ajudantes comprometidas… Eu estou deixando para vós o Livro de Deus e a sunna do vosso Profeta. Se os seguirdes, jamais vos desviareis."11

Oitenta e um dias após ter feito esse sermão, o Profeta faleceu. Ele estava doente havia dez dias, sofrendo de uma forte febre. Antes de ser enterrado, os seus companheiros reuniram-se para considerar o futuro deles, depois da partida do Profeta. Sua morte foi um choque terrível, que fez alguns deles perderem o bom senso. Em sua dor, eles estavam propensos a aceitar a afirmação de Ômar, do que ele havia feito naquele encontro, e que Mohammad não tinha morrido, mas que Deus o levara para os Céus, como havia feito antes com Jesus, e que ele continuava a viver. Abu Bakr chegou tarde para a reunião. Ouvindo Ômar, Abu Bakr instou-o a sentar-se e a ficar quieto. Mas Ômar insistiu e falou até mais alto. Abu Bakr, então, levantou-se e dirigiu-se aos muçulmanos ali reunidos: "Ó homens, se adorais Mohammad, sabei então que Mohammad está morto, morto, morto. Mas se tendes estado a adorar Deus, sabei então que Deus é eterno e nunca morre. Deus disse, no Seu Livro Sagrado: "Mohammad não é senão um mensageiro a quem outros mensageiros precederam. Porventura se morresse ou fosse morto, voltaríeis à incredulidade?"- Alcorão 3:144). Esta foi a última vez que o mundo muçulmano ouviu qualquer tentativa de deificar Mohammad, ou de atribuir a ele quaisquer das qualidades sobrenaturais que pertencem exclusivamente a Deus.

Antes daquela ocasião, quando da morte do seu filho Ibrahim, gerado para ele por sua esposa egípcia, Mariam, Mohammad foi acometido de profundo pesar. Uma vez que não tinha prole masculina, o nascimento de Ibrahim significara uma grande esperança para ele, tanto que ele se manifestara na escolha do nome ancestral para a criança. Sua morte prematura, na infância, com poucos meses de vida, deprimiu Mohammad seriamente. Naquele momento, um companheiro sugeriu que a criança não havia morrido, mas tinha sido levada por Deus e morava com Ele. Olhando para o infante morto em seus braços, Mohammad disse: "Ó Ibrahim, o fato de que tu és o filho de Mohammad, o Profeta de Deus, de nada te servirá, quando te encontrares com o teu Criador. O sol e a lua são sinais de Deus. Eles não brilham, nem se põem, para atender a alguém; nem são eclipsados, pela morte de alguém. Nada eleva um ser humano, a não ser os seus atos".

Notas

1. Ibn Ishac, Sirat (Biografia), Vol. II, págs. 348-357; Hayat Mohammad (A Vida de Mohammad), págs. 180-183.

2. Narrado em nome de 'Abdullah Ibn 'Amr Ibn al 'As, por Ahmad Ibn Hanbal no Al Musnad. (Cairo: Dar al Ma'arif, s/d), Vol. 2, pág. 176. A mesma tradição foi narrada, também, por Abu Dawud em Al Sunan.

3. Tal como relatado por al Bukhari, Muslim e Ahmad Ibn Hanbal.

4. Este hadice foi relatado por Muslim.

5. Alcorão 49:9.

6. Ibn Ishac, Sirat (Biografia), Vol. 2, pág. 457; Hayat Mohammad (A Vida de Mohammad), págs. 226-227.

7. Ibn Ishac, Sirat (Biografia), Vol. 3, págs. 699, seguintes; Hayat Mohammad (A Vida de Mohammad), pág. 299, seg.

8. Alcorão 48:1, seg.

9. Alcorão 17:81.

10. Hayat Mohammad (A Vida de Mohammad), págs. 338-389.

11. Ibn Ishac, Sirat (Biografia), Vol. 4, pág. 1022, seg.; Hayat Mohammad (A Vida de Mohammad), pág. 486-488.

Fonte: alcorao.com.br

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