"Deus é Quem vos cria, depois vos recolhe. Entre vós há quem chegará à senilidade, até ao ponto em que de nada se lembrará do que tenha sabido" (Alcorão Sagrado, 16:70).
Dessa citação, concluímos que a morte é inevitável, e poderá ocorrer a qualquer momento durante a infância, a mocidade ou a velhice da pessoa. Esse versículo ainda faz alusão à instância na qual algumas pessoas experimentam profunda impotência de senilidade durante o prolongado curso de sua vida. Contudo, o que não podemos deixar passar por alto é o fato de que antes que o inevitável (ou seja, a morte) ocorra, o homem é afligido, muitas vezes, por doenças que necessitam que ele recorra à atenção e aos cuidados médicos. Na maioria dos casos, ele é capaz de suplantar as suas enfermidades por meio de utilizar relevantes medicações, observar uma estrita dieta, e dar-se a suficiente descanso. Não obstante, nós não podemos controlar o fato de que, um dia ou outro, os seus órgãos talvez irão deixar de funcionar adequadamente. Se isso acontecer, então as duas opções que ele irá ter, dependendo da natureza do distúrbio, serão: ou se submeter a uma cirurgia corretiva, ou ter o seu órgão doente substituído por completo.
A substituição de órgãos doentes ou danificados não é, certamente, uma recente inovação médica. Já no século 8 a.C. cirurgiões hindus realizavam transplantes de peles para se substituirem narizes perdidos devido a sífilis, combate corporal ou punição por crimes. Similarmente, na literatura do hadice nós topamos com um incidente envolvendo Afraja (R), um sahábi (companheiro) do Profeta Mohammad (Deus o abenoe e lhe dê paz), que perdeu o nariz durante uma batalha, e teve-o substituído por um nariz de prata. Seu nariz de prata logo originou um cheiro ruim, e ele procurou o conselho do Profeta, que lhe aconselhou a trocá-lo por outro nariz feito de ouro. Porém não poderá ser negado que foi somente em 1913 que o Dr. Alexis Carrel, um cirurgião francês, teve sucesso ao transplantar um rim de um gato para outro. Isso só se tornou possível depois que ele conseguiu emendar vários vasos sangüíneos que foram cortados, ponta com ponta, possibilitando-lhes levarem o sangue tão eficientemente como o faziam antes da operação. Depois disso, no princípio dos anos 50, um transplante de coração ortopédico foi feito num cão.
Como preparação para o primeiro transplante de coração humano, o Professor Christian N. Barnard e sua equipe de cirurgiões realizaram transplantes de corações ortopédicos em cães, e realizaram um transplante de rim num certo Senhor Black. Subseqüentemente, em 3 de dezembro de 1967, o Professor Barnard e sua equipe sul africana de cirurgiões fizeram um histórico transplante de coração, de Denise Darvall, uma garota de 24 anos, com morte cerebral comprovada, após o seu envolvimento num acidente de motocicleta, em Louis Washkansky, um homem de 54 anos. O Sr. Washkansky viveu por 18 dias, e morreu por causa de uma infecção pulmonar, o que o levou a ter um enfraquecimento cardíaco causado por falta de oxigênio. Cerca de um ano depois, em 2 de janeiro de 1968, o Professor Barnard realizou ainda um outro transplante de coração. O receptor foi o Doutor Philip Blaiberg, um cirurgião-dentista da Cidade do Cabo. Eventualmente, ele conseguiu deixar o hospital e voltar à vida plenamente ativa. Comentando sobre a impressionante recuperação do paciente, o Professor Barnard escreve: "Sua coragem e determinação muito fizeram para tornar o transplante de coração uma opção realística para futuros pacientes portadores de doenças cardíacas terminais."
Em virtude do fato de que foram feitas referências aos transplantes de peles, substituições de órgãos por outros métodos artificiais, transplantes de rins em gatos, transplantes de corações em cães, transplantes de rins e corações em humanos, é imperativo que os diferentes tipos de transplantes de órgãos disponíveis sejam discutidos. Isto certamente nos ajudará a elucidarmos os problemas éticos e legais que o transplante de órgãos acarreta.
A Ciência identifica pelo menos três tipos de transplantes de órgãos, os quais são abaixo elucidados:
Auto-transplantes
Trata-se dos transplantes de pedaços dos tecidos de órgãos de partes do corpo do próprio paciente para outra parte. Os transplantes de peles, cartilagens, tendões, e ossos são extensivamente usados na cirurgia ortopédica.
Homotransplantes / Alotrotransplantes
Tais tipos envolvem os transplantes de órgãos de algumas pessoas para outras, ou de alguns animais para outros da mesma espécie. Alguns homo ou alotrotransplantes não se preservam por muito tempo, mas são úteis, teurapeuticamente falando, uma vez que ajudam o paciente a suportar uma crise temporária, como no caso de uma transfusão de sangue e nos transplantes de ossos. Os transplantes de ossos propiciam uma forma de estrutura que auxilia na regeneração dos tecidos do próprio paciente.
Deve ser ressaltado aqui que nem todos os homotransplantes-alotrotransplantes são rapidamente destruídos. Há exceções, como no caso de transplantes de rins, fígados, pulmões e corações. O transplante de um tecido avascular, como o da córnea, por exemplo, constitui igualmente uma exceção. O sucesso de tais transplantes depende da compatibilidade orgânica do doador e do receptor. Portanto, é um procedimento normal o estabelecer-se o grau de compatiblidade, antes que o virtual transplante aconteça, a fim de se diminuir o risco de rejeição.
Heterotransplantes
Os transplantes de um animal para o homem ou entre animais de diferentes espécies são conhecidos como heterotransplantes. De maneira que uma bem sucedida tentativa de substituir o coração defeituoso do Baby Face pelo coração de um babuíno foi feita, no Centro Médico da Universidade de Loma Linda, Califórnia. Do mesmo modo, um trabalho experimental teve início na Inglaterra com o fito de se transplantar os rins de um porco numa ovelha e, eventualmente, em seres humanos.
Pois bem, é verdade que o objetivo primeiro do transplante de órgãos é aliviar o sofrimento e melhorar a qualidade de vida mas, mesmo assim, ele deveras causa o surgimento de uma gama de questões de ordem ética e legal. Os auto-transplantes não causam, per se, quaisquer problemas, uma vez que se trata do transplante de pedaços dos órgãos de uma parte do corpo do paciente para outra parte. No entanto, no que diz respeito aos outros dois tipos de transplantes de órgãos, eles suscitam os seguintes problemas nas mentes dos muçulmanos:
1. A transfusão de sangue ajuda o paciente a superar uma temporária crise de perda ou falta de sangue, sendo que é categorizada como uma forma de transplante. Será que a chari'a (lei islâmica) iria sancioná-la? Afinal de contas, não é verdade que a jurisprudência islâmica (fiquih) considera qualquer forma de sangue que flui para fora do corpo como impura (najas)? Desse modo, será que poderia o sangue de um não-muçulmano ser transferido para os muçulmanos?
2. Os rins dos porcos poderão, num futuro próximo, ser considerados viáveis para o transplante em seres humanos, visto serem quase do mesmo tamanho dos destes. É do conhecimento geral o fato de que a chari'a proíbe o desfrute da carne de animais mortos, e da carne de porco. Porém, na iminência de um possível surto de fome ou de total ausência de alimentos, a norma poderá ser relaxada com base na necessidade de se salvar vidas. Será que os muçulmanos iriam optar por receberem rins de porcos, no caso de os seus deixarem de funcionar?
3. O que quer que seja que o homem tenha ou possua foi-lhe dado por Deus como uma confiança (amána). Portanto, será que não iria constituir uma quebra de confiança o dar consentimento à remoção de partes do seu corpo, enquanto ainda em vida, para transplante, a fim de beneficiar um seu filho, irmão ou pai?
4. A chari'a imprime ênfase à sacraticidade do corpo humano. Por conseguinte, será que não iria constituir um ato de agressão contra o corpo humano, equivalente à sua mutilação, caso os órgãos fossem retirados, após a sua morte, para o propósito de transplante?
5. Os rins para transplante podem ser obtidos tanto de doadores vivos como de cadáveres, ao passo que, obviamente, o coração, o fígado os pulmões e a córnea somente poderão ser procurados em pessoas que sejam tidas como clinicamente mortas (ou seja, aquelas cujo batimento cardíaco e cuja respiração hajam parado). Deve ser explicado que a espera pela cessação de todas as funções vitais, antes de se tentar obter os órgãos desejados, poderá resultar na avaria deles - daí a sua não viabilidade para transplantes. Será que, no caso, os muçulmanos iriam aceitar a total e irreversível perda da função crebral como uma plausível definição da morte?
Todas essas são questões pertinentes que precisam ser colocadas. Neste artigo, contudo, essas questões não irão ser destrinçadas. Esperamos que na nossa futura publicação as respostas a essas questões irão ser efetuadas. Vários Professores muçulmanos eminentes, tratam do conceito de "Morte Cerebral", partindo de um ponto de vista puramente científico. Eles enfatizam o fato de que o estado vegetativo não deverá ser confundido com o diagnóstico da morte cerebral. Eles ressaltam o fato de que um paciente, num estado vegetativo, poderá recuperar-se da sua incapacidade neurológica, ao passo que não haverá chance de que um paciente com morte cerebral confirmada se recupere. Eles concluem, afirmando que os critérios usados no diagnóstico da morte cerebral são rigorosos e acurados.
O Conceito da Morte Cerebral como Aplicável ao Transplante de Órgãos
O transplante de órgãos é ora uma realidade de avanços significantivos da última década. A obtenção de órgãos para os transplantes depende principalmente do diagnóstico da morte cerebral do doador. Como os rins foram os primeiros órgãos a serem transplantados, muitas das lições aprendidas com o fato foram estendidas para os transplantes de outros órgãos. Portanto, examinarei o conceito da morte cerebral, no contexto do trtansplante de órgãos, tomando os rins como principal exemplo.
Aproximadamente de 40 a 60 por cento da população-ano dos milhões de pacientes é admitida no hospital com o diagnóstico FALHA RENAL EM ESTÁGIO FINAL. Esses pacientes são incapazes de livrar seus corpos da dissipação tóxica produzida por seus metabolismo, e precisam de diálises, tanto da hemodiálise como da diálise peritônica, para que possam sobreviver. O transplante de rins oferece a esses pacientes a perspectiva de uma vida normal e, conseqüentemente, a maioria dos pacientes fica incluída no programa de transplante. O único fator limitativo é a disponibilidade de órgãos adequados; e saiba-se que esse problema não é nacional, mas universal. As principais fontes de suprimento estão nos:
1. Parentes, isto é, transplante vindo de parente vivo.
2. Desconhecidos, isto é, transplante vindo de cadáveres.
Os órgãos para transplante vindos de desconhecidos são obtidos dos pacientes com "morte cerebral".
A morte é definida como o fim da vida. Ela é reconhecida quando a pessoa pára de respirar, seu coração pára de bater; não há reação alguma, o corpo fica frio e, finalmente, o rigor mortis se estabelece. Caso isso ocorra, os órgãos dos pacientes não são aspergido com sangue, sendo, portanto, inadequados para o transplante. É importante conscientizarmo-nos de que a "morte cerebral" não pode ocorrer naturalmente. Ela é produto da tecnologia terapêutica. Os avanços técnicos têm capacitado os médicos no sentido de improvisarem a ventilação na base de longo prazo, e de transferirem o coração e os pulmões, em tempo recorde. O conceito de "morte cerebral" não define a morte; ele apenas altera o critério da identificação do momento da morte. Todas as funções vitais do corpo são controladas pelo cérebro. Algumas tentativas foram feitas, nos anos 60, para se formular complexos de critérios, pelos quais a função cerebral poderia ser considerada como "parada", e eles foram publicados, partindo da Escola de Medicina de Harvard, em 1968, e da Universidade de Minesota, em 1971. A base geralmente aceita para se determinar a morte cerebral foi apresentada pelos Colégios Reais, no Reino Unido, em 1976.
Para certificarmos alguém como cérebro morto, todos os seguintes critérios deverão estar presentes:
1. Haverá uma razão clínica para a morte cerebral, isto é, fratura na cabeça, tumor cerebral, hemorragia subaracnoidal etc..
2. Comatose Profunda na ausência de:
· Hipotermia
· Desarranjo metabólico, ou seja, eletrolites, açúcar no sangue, base ácida
· Distúrbio endocrínico
· Drogas depressivas ou relaxantes.
3. Apnéia. Não deverá haver nenhum esforço respiratório por cinco munutos fora do ventilador com a normal pressão de dióxido de carbono no sangue, ou com uma pressão de dióxido de carbono de 50mm. Hg., ao final de cinco minutos. Durante esse tempo, o oxigênio, a uma vazão de 6 litros por minuto, deverá ser libertado via uma sonda, para a traquéia.
4. A Ausência de Estímulo Cerebral Reflete:
· Pupilas fixas e dilatadas
· Ausência de reflexo da córnea
· Nenhuma reação motora dentro da distribuição craniano-nervosa, causada por qualquer estímulo somático na área.
· Nenhum reflexo de sufocamento
· Teste calorífico a frio, dando negativo. 20 ml. de água gelada é injetado vagarosamente na membrana timpânica, usando-se uma seringa e uma mamadeira; isso não deverá resultar num nystagmus, ou movimento do olho. Ambas as orelhas deverão ser testadas separadamente, e ambos os olhos deverão ser observados durante cada teste.
Deve ser observado que os testes clínicos irão determinar a perda da função do estímulo cerebral. A perda do estímulo cerebral é seguida da parada cardíaca e da morte total de todos os tecidos.
Certos testes confirmativos devem ser recomendados. Todavia, a necessidade de um Eletroencefalograma (EEG), ou a checagem quanto ao fluxo de sangue no cérebro, de maneira alguma permanece controvertido. Na checagem quanto ao adulto, esses testes não são necessários; mas nas criancinhas muito novas, em que o critério clínico da morte cerebral é de difícil verificação, é recomendado que testes confirmativos de laboratório sejam feitos.
O exame clínico para determinar a morte cerebral deverá ser repetido a intervalos, para nos certificarmos de que não houve nenhuma melhora na condição do paciente. Esta é a melhor de todas as garantias. A norma de ouro na diagnose da morte cerebral é: "quando em dúvida, não faça diagnose de morte cerebral". A ordem acuitativa desse sistema criterioso é de 100%. Os dados (informações coletadas do Banco Internacional de Dados) indicam que não tem havido falsos resultados positivos.
É importante que não se confunda os "estados vegetativos" com os diagnósticos da "morte cerebral". No estado vegetativo, o dano principal é quanto ao córtex cerebral ficando intacta a função estimuladora do cérebro Pacientes nessas condições não estão cerebralmente mortos, e poderão recuperar-se da sua incapacidade neurológica.
A diagnose da morte cerebral é útil, uma vez que proporciona aos parentes uma indicação precisa quanto às más prognoses paralelas. Os equipamentos são sempre necessários nas UTIs, sendo que essas máquinas poderão ser usadas mais por pacientes que têm melhores prognoses do que por aqueles que são considerados "cerebralmente mortos", e sem chances de recuperação. Mesmo que se continue a aplicar medidas ressuscitativas plenas num paciente com morte cerebral, o resultado irá ser uma parada cardíaca dentro de 24 ou 96 horas. O outro benefício em se reconhecer a morte cerebral está em que os pacientes tronam-se doadores de órgãos em potencial para transplantes. Os órgãos tirados de pacientes cerebralmente mortos apresentam uma chance melhor de funcionamento no período pós-operatório.
Em suma, os critérios usados na diagnose da morte cerebral são acurados, desde que aplicados duma forma diligente e esclarecedora, num grupo selecionado de pacientes.
O Ponto de Vista da Chari'a Quanto ao Transplante de Órgãos
A vida é uma dádiva outorgada a nós pelo Todo-Poderoso Deus (subhana Hu wa taala). Os primeiríssimos versículos que foram revelados ao Profeta Mohammad (salla Allahu alayhi wa sallam) nos dão conta de que devemos a nossa existência/criação a Deus (subhana Hu wa taala):
"Lê, em nome do teu Senhor Que criou; criou o homem de algo que se agarra"(Alcorão Sagrado, 96:1-2).
Da mesma maneira, em vários outros versículos é relembrado ao homem que os sentidos e os órgãos que ele possui, tudo lhe foi dado por Deus (subhana Hu wa taala). Por exemplo:
"Ele foi Quem vos criou o ouvido, a vista e o coração. Quão pouco Lhe agradeceis!" (Alcorão Sagrado, 23:78).
No que concerne ao transplante de órgãos, devemos ter em mente que nem o Alcorão nem a sunnah o sanciona ou o condena. Quando falamos do ponto de vista da chari'a quanto ao transplante de órgãos, referimo-nos aos regulamentos jurídicos apresentados/expressos quanto à questão do transplante de órgãos, baseados nas deduções tiradas dos ensinamentos amplos do Alcorão e da sunna. Portanto, o que normalmente acontece é que, em todas as questões não especificamente tratadas no Alcorão e na sunna, existe uma propensão a haver diferenças de opinião. Nas minhas leituras sobre a questão do transplante de órgãos, do ponto de vista da chari'a, eu notei que a ulama do subcontinente hindu-paquistanês tem-no como ghayr jaiz (não permissível), ao passo que os países árabes o consideram jaiz (permissível).
O Sr. Mufti Muhammad Shafi tem para si que o transplante de órgãos não é permissível, com base nos seguintes fatores:
a. Sacraticidade da vida/corpo humano
b. O corpo humano como uma amána (confiança)
c. A sujeição do corpo humano para fins meterialistas.
A. a sacraticidade da vida/corpo humano:
Partindo dos ensinamentos alcorânicos, pode ser calramente deduzido que o homem é exortado a proteger e preservar a sua própria vida, bem como as de outros. Por exemplo, Deus proíbe o homem de tirar a sua própria vida.
"...e não cometais suicídio, porque Deus é Misericordioso convosco." (Alcorão Sagrado, 2:295.) "Que as vossas mãos não contribuam para a vossa destruição." (Alcorão Sagrado, 5:35).
Igualmente, Deus (subhanahu wa ta'ala ) incute no homem a enormidade do pecado de tirar a vida de alguém:
"Quem matar uma pessoa, sem que esta tenha cometido homicídio ou semeado a corrupção na terra, será considerado como se tivesse assassinado toda a humanidade; quem a salvar, será reputado como se tivesse salvo toda a humanidade." (Alcorão Sagrado, 5:32).
Na literatura do hadice, está registrado que o Profeta (salla Allahu alayhi wa sallam) disse, no seu khutbat al wada (Sermão de Despedida):
"Vossas vidas, vossas propriedades e vossas honras serão sagradas até irdes ao encontro do vosso Senhor."
Partindo das deduções fundamentadas nos ensinamentos acima, os juristas muçulmanos têm declarado que os crimes dirigidos contra uma pessoa encontram-se sob três divisões distintas:
A primeira categoria se aplica quanto ao crime cometido contra o indivíduo total, ou seja, matando-o.
A segunda categoria pertence aos crimes que são dirigidos não contra a vida da pessoa, mas contra partes do seu corpo.
A última categoria consiste de um crime cometido por um ser humano contra o que é considerado tanto como uma pessoa, por um lado, e como uma não-pessoa, por outro.
A agressão contra o feto recai na última categoria, uma vez que é de constituição humana em seu próprio direito e também (no sentido judicial) é não-humano, em vista do fato de que não está separado do corpo da mãe.
Num outro hadice relata-se que o Profeta (salla Alahu alayhi sallam) tenha dito:
"Quebarmos os ossos de uma pessoa morta é igual (em pecaminosidade e agressão) a quebrarmo-los quando a pessoa está viva."
À luz do hadice acima, portanto, a agressão contra o corpo humano é, indubitavelmente, um crime e um pecado. Como poderá alguém, portanto, permitir-se cortar um corpo humano e dele retirar qualquer órgão? Será que isso não constituiria um ato de agressão contra o corpo humano e, assim, o equivalente à sua mutilação?
B. o corpo humano como amána (confiança):
O Alcorão nos diz que Deus honrou o homem, tornou subserviente a ele tudo o que existe nos céus e na terra, como uma bênção e misericórdia. Ele ainda dotou-o com e confiou-lhe tudo o de que precisa com respeito aos seus órgãos corporais. Como poderia ele doar qualquer um dos seus órgãos, os quais, na realidade, não são seus, mas lhe foram confiados como amána (confiança)?
Depois, se o homem fosse vender os seus órgãos, essa venda seria uma falcatrua, considerada inválida pelo mesmo motivo: ele não poderia comerciar com algo de que não é o dono.
Um hadice do Profeta (salla Allahu - alayhi wa sallam) relata que "entre aqueles que hão de prestar contas no Último Dia está aquele que vendeu um homem livre e devorou os ganhos." Isto talvez signifique que, na lei islâmica, por exemplo, se a pessoa fosse vender um homem livre, o comprador não iria ter direito sobre ele durante a sua existência, uma vez que o contrato passaria a ser haram (proibido) desde o começo. Entretanto, o corpo de uma pessoa - viva ou morta - pertence a Deus e unicamente a Deus. Segue-se, portanto, que ningém, nem mesmo os seus descendentes têm o direito de vender, doar ou dispor do seu corpo, incluso os órgãos, exceto da maneira prescrita pelo Islam, isto é, para enterrar adequadamente o falecido.
Por último, se passasse a ser permitida a venda de órgãos humanos, não iria haver meios de se prevenir que fosse haver abusos. Assim, os órgãos dos pobres iriam ser vendidos no mercado, como qualquer outro artigo de necessidade.
C. a sujeição do corpo humano para fins materialistas
Isto é deduzido de dois exemplos:
Primeiro, uma fatwa afirm que se uma pessoa, devido à fome, encontrar-se à beira da morte, e for incapaz de de encontrar carne de um animal morto, a fim de se salvar, e, nisso, for-lhe oferecida carne humana, não lhe iria ser permitido comê-la.
Segundo, está registrado na literatura do hadice que o Profeta (salla Allahu alayhi wa sallam) disse que Deus denunciou ou amaldiçoou aquele que junta o cabelo de uma mulher ao de outra para fazê-lo parecer mais comprido - e também amaldiçoou a mulher a cujo cabelo o cabelo foi juntado. Entretanto, no hidaya, afirma-se que é permissível que a mulher aumente os seus cachos por meio de pêlos de animais. De sorte que talvez esteja implícito que o uso de cabelo humano para esse propósito seja ilícito.
Por extensão, partindo dos dois exemplos acima, o uso das partes do corpo humano, ou seja, os seus órgãos, também será ilícito.
Os eruditos islâmicos, como Cheikh Abd Allah al Abd al Rahman al Bassam e o Dr. Cheikh Rachid Rida Qabbani, que advogam pela premissibilidade dos transplantes de órgãos, fazem-no com base nas seguintes máximas:
A. al maslaha :O bem-estar e a comodidade da umma muçulmana
A verdade é que o Islam proíbe qualquer ato de agressão contra a vida humana, bem como ao corpo humano após à morte. Deus (subhana Hu wa taala) diz explicitamente:
"Enobrecemos os filhos de Adão" (Alcorão Sagrado, 17:70).
Também é relatado que o Profeta (salla Allahu alayhi wa sallam) disse:
"Quebrar-se os ossos de uma pessoa morta é igual (em pecaminosidade e agressão) a quebrá-los quando a pessoa ainda está viva."
Os relatos acima são argumentos fortes a favor da honorabilidade do corpo humano. De modo que tirarmos um órgão do corpo de um morto, para o transplantarmos em outra pessoa, será o equivalente a mutilarmos esse corpo e violarmos a sacraticidade do cadáver.
Porém, a beleza do sistema legal islâmico repousa no fato de que ele leva os interesses do homem em consideração. Isto dá conta das seguintes normas judiciais:
1. A necessidade torna permissível o ilícito.
2. Quando dois interesses entram em conflito, que aquele que vá trazer maior benefício tenha precedência.
3. O menor de dois males.
As amplas normas gerais islâmicas são fundamentadas nos princípios de estabelecerem o que é de interesse geral, e coibirem o que é contra isso. Daí, se o ganho geral pesar mais do que o aspecto negativo de uma ação, está feito; mas se as conseqüências negastivas de tal ação pesarem mais do que as positivas, nada feito.
Por exemplo, a lei islâmica permite que se corte a barriga de uma grávida morta, para ser retirado um feto, caso algum movimento seja detectado. Assim, vê-se que na lei islâmica o direito do vivente supera a consideração quanto ao morto.
De modo idêntico, a lei islâmica irá permitir que se corte a barriga de uma pessoa que engoliu um valioso diamante ou um pedaço de ouro, para que este seja devolvido ao seu lídimo dono. Se ele pertencia ao morto, então os seus herdeiros irão beneficiar-se disso. O interesse monetário tem prioridade sobre o morto.
Então, seguindo a mesma linha de argumento, depois que a pessoa morreu, é justificável que se lhe retire o órgão, com o fim de transplantá-lo em outra pessoa viva, a qual irá beneficiar-se disso.
Essa permissibilidade é acompanhada de certas restrições:
1. Que o transplante seja a única (o único) forma (meio) de tratamento.
2. Que o esperado grau de sucesso do transplante seja alto.
3. Que o consentimento do dono do órgão, ou dos seus herdeiros, seja obtido.
4. Que a morte esteja plenamente confirmada por médicos muçulmanos de características honradas, antes que tal eventualidade tenha lugar.
5. Que o paciente receptor seja informado da operação e sua aplicação.
Essas amplas regras gerais islâmicas são fundamentadas no princípio de se estabelecer o que é do interesse geral, e de se coibir o que é contra ele. Assim sendo, se o ganho geral tem mais peso do que o aspecto negativo de uma ação, muito que bem; mas se as conseqüências negativas de tal ação tem peso maior, então nada feito.
No caso de órgãos viabilizados por não muçulmanos a receptores muçulmanos, a permissibilidade será governada pelo fato de que:
1. Não haja órgãos disponíveis para muçulmanos.
2. A vida do muçulmano ficaria em grande perigo, se o transplante não fosse realizado.
Eis porque alguns fuqahá (juristas) até acham que a doação dos órgãos de alguém para o benefício de outros muçulmanos deveria ser considerada como fard kifáya.
B. Al ithar (Altruísmo):
Igualmente, eles são da opinião de que uma pessoa viva poderá doar um dos seus órgãos (como um rim) para outro muçulmano que esteja em grande necessidade dele. Eles baseiam seus argumentos apoiados no versículo alcorânico que diz:
"...auxiliai-vos na virtude e na piedade" (Alcorão Sagrado, 5:2).
Apoiados estão também no hadith do Profeta (salla Allahu alayhi wa sallam), que diz:
"Os crentes, em seu amor e sua simpatia, uns para com os outros, são como um só corpo; quando uma parte dele é afetada pela dor, todo ele reage, em termos de insonolência e febrilidade."
Esses textos ressaltam a força da irmandade que deveria existir entre os muçulmanos. Assim sendo, se um muçulmano necessita de um certo órgão e outro o tem disponível, cedê-lo não iria ser um gesto de altruísmo, um ato de o compartilhar, para o benefício do muçulmano?
Contudo, deve-se prestar atenção nas seguintes restrições:
1. Que o consentimento do doador deverá ser obtido.
2. Que o transplante seja a única forma possível de tratamento.
3. Que não haja perigo iminente quanto à vida do doador.
4. Que o transplante em questão tenha provado ter tido sucesso no passado.
Nota: Um órgão vital (como o coração) não poderá ser doado, uma vez que isso iria ser equivalente ao suicídio. Protergermos a vida de alguém, bem como os seus órgãos, é uma obrigação, e não devemos dar preferência à vida de outrem em detrimento da nossa própria, a não ser por um objetivo elevado, qual seja o do din (fé islâmica), que nos faculta dar a vida em jihad (em defesa do Islam).
Do mesmo modo, o Dr. Chaykh Jad al Haq Áli Jad al Haq, da Universidade Al Az-har, Cairo, Egito, afirma que constitui haram (proibido pela lei da Chari'a) a venda de órgãos, em vista do fato de que tal venda iria violar a dignidade e a honra do homem.
Conclusão
Se este artigo tiver sucesso em esclarecer os muçulmanos quanto à questão do transplante de órgãos, ele terá atingido o seu objetivo.
Nossos leitores devem ter notado que a introdução tratou dos vários tipos de transplante de órgãos. Essa informação foi necessária para elucidar os problemas que toda a questão do transplante de órgãos propõe à mente muçulmana.
No capítulo 2, o conceito da morte cerebral foi abordado, partindo-se de um ponto de vista puramente científico. Foi ressaltado que os órgãos para os transplantes de rins são obtidos de pacientes "cerebralmente mortos". Do mesmo modo, foi mencionado que os órgãos tomados a pacientes cerabralmente mortos têm uma melhor chance de funcionar no período pós-operatório. Ainda mais, foi enfatizado o fato de que qualquer pessoa associada ao subseqüente transpalnte de órgão ficava impedida de fazer a diagnose da morte cerebral. Finalmente, certeza foi dada ao fato de que os critérios usados para se determinar a morte cerebral eram rigorosos e acurados.
Não há dúvida de que o avanço conseguido no campo da tecnologia biomédica tornou obsoleta a tradicional compreensão da morte (isto é, a cessação do batimento cardíaco e da respiração). Tornou-se imperativo, então, definir-se de outra forma a morte. Eminentes médicos muçulmanos são de opinião que uma vez que a jurisprudência islâmica (al fiqh) não estipula o virtual momento da morte, os muçulmanos ficam com um esquema amplissimamente fundamentado, pelo qual as testificações e as difinições poderão ser adaptadas, dependendo dos estados de perícias científicas e técnicas disponíveis.
No que diz respeito ao ponto de vista da Chari'a quanto ao transplante de órgãos, vimos que há duas visualizações opostas. A objeção apresentada por Mufti Muhammad Shafi deve ser respeitada. Contudo, não podemos menosprezar o fato de que outros eruditos, como o Dr. Cheikh Abd Allah al Abd al Rahman al Bassam e o Dr. Cheikh Rachid Rida Qabbani, que sancionam o transplante de órgãos, têm argumentos válidos a apoiarem os seus pareceres.
Todos os muçulmanos concordam com que o corpo humano morto deverá ser tratado com o maior respeito. A remoção de órgãos da pessoa morta não deve ser visualizada como um ato de mutilação. A razão de se fazer isso é motivada pelo princípio jurídico islâmico, o qual leva em consideração o interesse do homem, afirmando que o direito do vivente supera a consideração quanto ao direito do morto.
A doação do rim de uma pessoa para um membro da família, ou para um amigo que esteja necessitando dele, de maneira alguma poderá ser considerada como estar-se sujeitando o corpo humano a fins materiais, sendo, por isso, impermissível. Ao contrário, isso deverá ser visualizado como uma ação de compartilhamento, motivada pelo espírito de amor e simpatia.
Novamente, digamos, há uma concordância no sentido de que todas as coisas pertencem a Deus (subhanáhu wa ta'ála). O doar, um indivíduo, os órgãos para o benefício de uma outra pessoa, em vez de deixar que eles se decomponham juntamente com o resto do corpo, não poderá ser chamado de khiyana fi al amána (quebra de confiança), porque a niyya (intenção), por trás desse ato, poderá ajudar uma outra pessoa (um muçulmano), cuja qualidade de vida poderá ser melhorada, capacitando-o, desse modo, a prestar serviços para a causa do Islam.
Devemos recordar aqui de que o Profeta Mohammad (salla Allahu alayhi wa sallam) mandava os membros da sua umma procurarem a assistênca médica, sempre que caiam doentes. Os transplantes de órgãos deverão ser vistos como uma forma de tratamento, sendo, portanto, imperioso que os muçulmanos se valham dessa forma de tratamento, caso nenhuma outra forma esteja à mão.
Wa ma tawfiqui illa billah.
(O meu sucesso pertence a Deus).