A questão de Samarkand
Era uma noite morta, em cujo peito não se repetia nenhum respiro de brisa, nem havia mostra de qualquer movimento denotativo de vida.
Cegante, onde nenhum olho enxergava sequer uma estrela brilhante no céu ou uma lamparina iluminando a terra. Cada vivente, em Samarkand, recolheu-se em seu leito e a cidade adormeceu sob o peso do silêncio e das trevas. Nela ninguém permaneceu desperto senão este homem, que saiu do seu lar para mergulhar na escuridão da noite em direção ao seu objetivo, sem parar e sem se virar, até atingir o palácio do governo, em cuja direção lançou um olhar, que se fosse pirogênico, o teria queimado. Logo em seguida alargou os passos e apressou-se como querendo evitar a visão do palácio e ultrapassar o tempo em direção ao objetivo a alcançar. Largou a cidade e foi envolvido pela selva. Ali, zumbiram em seus ouvidos, os sons de seus bichos e insetos. A selva estava misantrópica, imersa em duas escuridões: a sua própria e a da noite..... . No entanto, o homem sequer prestou atenção à solidão e à escuridão, uma vez que a sua grandiosa busca e o enorme perigo que esta envolvia, dispensara-o de pensar na ponderabilidade desta noite, de ser o único na selva, e do medo deste breu acumulado ao seu redor, cindir-se sobre algo que o ferisse e o amedrontasse... . Foi quando atingiu o rochedo em que se ergue a porta do templo, que se deteve e parou. Dentro dele mesclou-se a sensação de forte imponência e em seu peito fincou-se algo que em nada se assemelhava a solidão da floresta. Não era um guri a temer fantasmas, nem era um covarde, porém o que lhe puseram dentro de si, quando pequeno, dos segredos do templo e seus encantos, fizeram-no, quando atingiu a juventude e a maturidade, ainda ser diante do templo, tal qual a criança pequena, apesar de ser o campeão da região sem igual e o herói dos combates tenebrosos.
Porém, o templo é outro que não a praça de guerra. E se na praça de guerra enfrentava homens tal que ele, no templo acontece haver forças que ele não vê, e nuanças em que a coragem nada pode fazer, e em cujo interior jamais penetrou. Só adentra o templo aquela seleção de anciãos que praticaram formas de adoração e exercícios que os tornaram aptos a fazê-lo, e deles tampouco era permitido sair e ver a luz do sol e as flores dos jardins. Sentia que estes sacerdotes causavam-lhe, ao mesmo tempo, em seu coração temor e amor, e sentia medo deles, mesmo sendo ele aquele que enfrentava os combatentes ferozes e encarava a morte certa, sem medo ou hesitação. Permaneceu longamente de pé, frente ao rochedo, temendo tocá-lo com a sua mão, conforme ordenaram-lhe fazer, quando chegasse ... .
Começou a apurarar o olhar na escuridão, e então viu um indivíduo de estatura enorme, de barba branca e que brotara do chãão. Tremeu e recuou, porém, ouviu uma voz humana a chamá-lo pelo nome e convidando-o a seguí-la. Soube então ser o vigia encarregado do portal do templo. Seguiu-o com o coração palpitando, na expectativa do que há adiante de obscuridades e segredos. Atravessou com o vigia um labirinto comprido e tortuoso, iluminado com lamparinas de latão, esculpidas em baixo relevo, e das quais saía uma chama azul dançante, e daí projetava sobre as paredes de pedra, sombras incríveis. E na passagem do labirinto , havia estátuas de deuses (deuses ?). ...(e não há divindade senão DEUS), de aspecto feio e tenebroso, de cujos olhos fulgurava uma luz vermelha, dotando-as de uma aparência que arrancava os corações dos mais destemidos... .
No labirinto havia fissuras donde penetrava o ar que assobiava um assobio amedrontador, como se fosse uma multitude de corujas. Adentrou com o vigia numa câmara escavada na rocha, até ter à sala dos sacerdotes que não eram vistos por ninguém, uma vez que não saíam do templo, e que raramente introduziam alguém lá. Tais sacerdotes eram os governantes da região, donos da palavra, e dessa palavra, ninguém ousava desobedecer ou compadeceria da maldição dos deuses do templo de aspecto feio e tenebroso ... . (E não há divindade senão DEUS). Não pôde o homem, devido à sua perplexidade, virar o olhar ao seu redor ou encher os olhos com a visãvão dos sacerdotes e de quem estava com eles. Ouviu palavras sendo amalgamadas em suas orelhas, num tom baixo, arrepiante, como se as ouvisse num sonho. Entendeu que o palavreador mencionava o passado de Samarkand e sua derradeira glória. E de como aterrissaram sobre ele estes tais muççulmanos, como uma praga, removendo o seu trono, aniquilando o seu exército, com os quais, governou e reinou. Seguiu acrescentando e expondo o plano por ele elaborado para corromper sua educação e religião, para enfraquecê-los e depositar a discórdia entre eles. E era um plano diabólico que o fez tremer ao ouví-lo. Retrucou, novamente, o palavreador, dizendo: Acontece que resolvemos adiar o nosso plano, e lançar a última flecha de que dispomos, uma vez que ouvimos que este povo tem um rei justo, residente em Damasco, e daí termos decidido enviar-lhe um emissário que informaria de nossas queixas e lhe explicaria a respeito da injustiça que sofremos e então veremos o que ele fará. Por isto o escolhemos, pois sabes o idioma árabe e és destemido, para ser nosso emissário. - Estais de acordo ? Disse o homem: - Sim ! - Ide com a anuência dos deuses, devolveu o palavreador . ( E não há deuses além de DEUS) .
Saiu sem que a terra o contivesse de tanto contentamento. Sentiu-se tão leve e ativo como se fosse voar. Enxergou a escuridão da noite iluminada. Convenceu-se tratar-se de uma grande bênção a sua entrada no templo, e o seu colóquio com os sacerdotes, ocasião em que foi motivo de suas confianças e queixas. Honraram-no com a incumbência de cumprir a maior missão delegada a alguém, e sentiu que a liberdade e a honra de Samarkand estavam em suas mãos, e que ele era o seu advogado e defensor. A sua temeridade era tanta que desejaria, então, que o incumbissem de guerrear com os muçulmanos e removê-los de sua cidade. Desconhecia ele, porém, a dimensão da força dos muçulmanos e da magnificência de seu reino e que esta região toda, quando comparada ao reino deles, era como uma aluvião que veio desafiar o mar ... e se o mar espumar e enfurecer, arrancaria o aluvião de suas fontes, engolindo-o e nele se perdendo, sem restar resquício sequer. Empacotou sua bagagem, viajou, e passou a atravessar as noites compridas, as semanas e os meses, sempre andando sob a flâmula triunfante do Islam, não encontrando um cajado de apoio, e assim que pode, atingiu a capital. De Samarkand , a Bukhara, a Balakh, a Harat, ao Cáspio, ao Moussel, a Alepo, e a Damasco.
Um mundo verdejante de civilização e glória. Países que foram múltiplos reinos, onde qualquer um deles era maior que Samarkand, e o que era Samarkand, se comparada ao Reino Persa, e onde estáás agora, Reino Persa ? Este foi engolido pela cidade d'além deserto, atrás das areias da península, aquela aldeia que Muhammad chacoalhou com a sua mão e aí fez nascerem os heróis que dispersaram-se pelos cantos do mundo e dele se apropriaram. E de suas areias floresceram os jardins de Damasco, do Iraque, da Pérsia e Khurosen. Estes países férteis, cheios de pastos e que não tem fim. Toda vez que avançava e via algo novo do mundo do Islam, sua alma enchia-se de receio de encontrar o Califa. Num certo dia, acordou em transe, após meses de viagem, com a voz do guia, anunciando o nome de Damasco. Esta Damasco, umbigo do mundo, a promissão do mundo. Aqui está a temer a DEUS, a altivez, a glória, a riqueza, a licitude, e a beleza. Daqui sai a palavra que caminha e que perfaz-se obedecida até terminar na sua terra, Samarkand, ou perfazer-se daqui, até atingir terras ainda mais distantes e isoladas, ao ultrapassar até a Espanha. Aqui reside o homem que reina sobre o que não reinou na antigüidade nem César, nem Alexandre, nem Khokon e outros, e que não encontra das montanhas da China até o mar das trevas (Oceano Atlântico), quem desobedeça as suas ordens ou conteste as suas palavras. Porém, como chegar até o Califa, se no caso dele, emissário de Samarkand, um estranho na capital do governo dos muçulmanos, lhe seria, provavelmente, vedado o acesso a ele?
Aí, então, mesclou-se em seu coração a desesperança. Procurou por uma pensão e lhe foi indicada uma na qual passou aquela noite. Quando amanheceu, retirou suas vestes, vestiu a melhor e saiu para encontrar com o Califa. Logo foi ter com o primeiro ser que encontrou, querendo perguntar-lhe sobre o palácio do Califa. Sentiu tamanho temor, que ficou com medo de encarar o homem que governa metade da terra, e que o reino do magnífico Xanxai, da outrora Pérsia, sequer atinge a dimensão de um estado governado por um de seus emires, e lembrou como ruíam os corações quando do encontro com o Xá da Pérsia, de como reis esperavam a sua porta e de como matava pela simples desconfiança, ou decepava o pescoço do homem que dissesse uma palavra que o desagradava, ou o encontrava numa hora em que estaria o Xá, aborrecido. Então palpou o seu pescoço e o imaginou decepado, de tanto medo. Imaginou a sua cabeça voando longe de seu corpo e então com ela voou o seu entusiasmo e a sua coragem, e detestou o encontro com o Califa. Pensou no retorno a sua terra, a salvo, antes que se envolvesse numa desgraça, com a qual de nada lhe adiantaria nenhuma glória, nem uma pátria que o libertasse e nem um sacerdote que o agradasse.
Mergulhou em seus temores e pensamentos e passou a andar sem orientação, e toda a vez que passava por um dos palácios de Damasco, e via a sua suntuosidade e magnificência, com porta enorme, de largura feito a rua enorme, com um arco alto, com ornamentos erguidos sobre dois discos de mármore límpido. Viu as pessoas entrarem e saírem sem que alguém as interpelasse ou que fossem interrompidas por secretário ou porteiro. Teve, então, certeza de ser este o palácio do Califa.
Tomou coragem, reuniu toda a sua decisão e adentrou pé ante pé, e como ninguém o impediu, tranqüilizou-se. Contemplou o local e eis que estava num vão enorme, no qual em estando num canto, não haveria de ver com nitidez o outro lado. Seu chão, todo em mármore ofuscante, estava atapetado, e as pessoas sentavam-se sobre ele, e ao redor, paredes altas e que jamais tinha visto, tal a suntuosidade da construção, igualmente tão elevada. As paredes ornadas com as mais estranhas formas de arabescos, e no centro do vão central, um chafariz que refletia a luz do sol, apresentando então um panorama incrível. Adentrou do vão central para uma câmara não menor que esse, e tampouco aquém dele em esplendor e beleza, cujo teto, erguido sobre os pilares de máármore, sustentava arcos que suportavam pilares menores, com argolas de prata dependuradas do teto carregando lamparinas e lustres. Passou a andar por entre as pessoas, fascinado, sem saber o que fazer. Esbarrou num homem que levantava e sentava, mencionando no nome de DEUS. O homem virou-se para a direita e a esquerda e olhou para ele, e viu ser ele um forasteiro. Perguntou-lhe como estava, pelo que adiantou-se em responder, em sua língua, informando ao homem, que veio de sua cidade, querendo encontrar-se com o Califa, e atentou achando que o homem temeria por ter mencionado o Califa sem magnificá-lo ou enaltecê-lo. E que este o empurraria à polícia e que o conduziria à prisão. Porém, viu o homem tranqüilo e sereno, como se não tivesse ouvido realmente, nada improprio, ouvindo-o dizer-lhe: - Deseja que lhe indique a sua moradia? - pelo que respondeu o samarkandiano: - - E esta não é a sua moradia ? pelo que lhe disse o homem sorrindo: - - Não, esta é a casa de Deus, esta é uma mesquita. Fizeste a salat (prece)?
No interior da sua mente, indagava: rezar e como fazê-lo, sendo ele um adepto da religião de Samarkand, religião esta da qual só conhecia o templo repleto de segredos, e daqueles deuses amedrontadores, de faces horripilantes e feias, e passou a pensar, a partir daí, de como era diferente este templo do templo escondido no ventre da terra, e que diferença entre a luz e a beleza e aquela escuridão e feiura, e duvidou pela primeira vez, em sua vida, da religião sobre a qual cresceu. O homem voltou a perguntar, pelo que disse: Não, não rezei, e não sei o que é a salat (prece). Perguntou o homem ao samarkandiano: - Qual a sua religião ? Ele respondeu: Eu sigo a religião dos sacerdotes de Samarkand. Perguntou novamente o homem, e como é a sua religião ? E ele respondeu não saber. E uma vez mais, perguntou-lhe, quem era o seu Senhor? Pelo que respondeu: Os deuses amedrontadores do templo. Pelo que mais uma vez, perguntou-lhe o homem: E eles te concedem o que pedes? Te saram se adoeceres ? Pelo que finalizou o samarkandiano: - Não o percebo. E viu-o o homem, um desorientado, um ignorante, enquanto ele, o samarkandiano, o homem colocava em seu coração vazio, os princípios da religião verídica com clareza, sintetismo e beleza.
Não decorreu senão uma hora, até que o emissário dos sacerdotes de Samarkand, passou a crer em DEUS e em seu Mensageiro Muhammad, através do qual fez DEUS, destes muçulmanos, senhores do mundo, e que antes deste profeta, estavam numa profunda desorientação. Disse o homem, depois: - Levanta-te agora, que eu lhe mostrarei a residência do Califa, mesmo que agora seja a hora em que nela trata de si e de sua família e fica só. Seguiu-o pensando na beleza desta religião e sua altivez, uma vez que se fora a membrana dos seus olhos, e então apercebeu-se do segredo por trás de tais conquistas, e esta força que nada conseguiu enfrentar. Como comparar esta religião aberta, escancarada, clara, que faz de cada um de seus seguidores um sacerdote e um homem da religião, (sem contudo constituírem-se numa casta sacerdotal), com aquela religião desconhecida e escondida. Como ? Como ?
Saiu da mesquita, por uma porta que não a que por ela entrou, e não se deu conta de si a não ser quando o homem disse-lhe, apontando para uma porta de toras de madeira, não tingidas e não esculpidas: - Esta é a residência do Califa. Como ? indagou o emissário de Samarkand, pelo que respondeu novamente o homem: Esta é a residência do Califa. Como é possível que a residência do Califa seja aquém das residências dos seus súditos comuns, e ele que passou por elas, e viu fascinação e beleza? Olhou para o homem, pensando que este debochasse dele, e viu-o sério. Deixou-o e aproximou-se da porta duvidando do que o homem disse, e olhou . Viu um homem adulto, de pé, consertando com argila o muro da casa e uma mulher amassando a massa do pão. Então deixou a porta e alcançou homem, e irado, disse-lhe com raiva : Não devias mentir para mim, pergunto-lhe onde fica a residência do Califa e me indicas a residência de um obreiro ? Perguntou, ainda, e que é o proprietário da casa, e descreveu ao homem o que viu, pelo que obteve como resposta: - Este é, por DEUS, justamente, o Emir dos Crentes e sua mulher ! Acaso não sabes quem é ela ? Esta é a esposa do Califa Omar e filha do Califa Abdulmalic e irmã dos Califas Walid e Suleiman e irmã de Hichem e Iazid, prováveis futuros Califas, e esta é a mulher mais gloriosa entre os árabes.
O Emir dos Crentes vivia antes de assumir o califado, ostentativamente entre as pessoas. No entanto nele havia uma veia de Omar Ibn Al Khattab e esta tendência fez com que ele, ao assumir o califado passasse a ser tal qual vistes. Portanto, retorne a ele, bata a sua porta, e exponha-lhe sua queixa, e não tema. Por Deus, não é ele o rei prepotente, nem o governador opressor e sim é ele um servo de Deus, fácil e dócil, e se enxergar o verídico, o encaminhará e nada se interpolaria a ele. E se ficar irado, pela causa de Deus, aí as tempestades são aquém de sua ira, e os relâmpagos em força e resolução, portanto, vá e tenha êxito. Foi-se o samarkandiano em direção a casa do Khalifat, atrapalhando-se no seu andar, ora adiantando um pé, ora atrasando o outro. Acentua-se o fogo do entusiasmo dentro de si, e aí, dá um passo, e depois siflam os ventos da dúvida e então pára. Voava ele na imaginação a respeito dos reis do seu país, e imaginava todos aqueles obstáculos dos palácios e aqueles impedidores (sentido literal da palavra secretário em árabe) às portas com as espadas desembainhadas e as lanças brandidas e depois visualiza esta moradia, e este do qual disseram ser o Emir dos Crentes.
Então aumentavam as suas dúvidas. Ele conhece o governante que governa com prepotência, e os súditos que obedecem pelo temor, porém, o governante justo e a obediência pelo amor, era algo que até então, que não conhecia em seu país !
E sedimentou-se em si, que o homem debochava dele, então correu atrás dele, até alcança-lo novamente, e disse-lhe: - Peço-lhe por Deus, ó homem, é esta realmente a moradia do Emir dos Crentes ? - Disse: Sim, por Deus, esta é a sua morada! Esta é a morada do homem que a Xaría do Alcorão (legislação do Alcorão) o fez sucessor das coroas dos quatro reis da Pérsia , a de César, a do Faraó e a de Khokon. Sua tez foi mais altiva do que ser atingida por qualquer destas coroas e não foi ocupada senão pela AMAMAT (pano usado pelos árabes sobre a cabeça) sobre suas cabeça, e esta é a coroa dos muçulmanos. Esta é a morada do homem ao qual foram trazidos os frutos da Terra, e então pesou do ouro e deu-o ao seu merecedor, com as mãos, e concedeu aos pobres as pedrarias e dividiu entre os necessitados as jóias, e permaneceu ele e sua família, sem nada.— A razão dele, o Califa, assim proceder, era em função da consciência da transitoriedade de sua autoridade, que era baseada na Força da Razão, e não na razão da força, em perfeita coerência com os ensinamentos do Islam, e que o conduziram a tal desprendimento, até e porque, a sua finalidade era de servir a nação muçulmana e não de por ela ser servido.
Os valores materiais têm seu lugar, sempre de acordo com o necessário equilíbrio, mas não pode o ser humano esquecer que tudo aquilo que chega às suas mãos, no aspecto material, antes de mais nada, é havido, pela determinação de Deus, o Altíssimo, e no momento em que Ele, o Onipotente decidir, a Ele, tudo retornará, e em conseqüência disto, o quinhão do Paraíso é preferível à riqueza material . E não migrou da vida e do seu desfrute para habitar numa caverna, numa montanha e ser asceta entre as pessoas ou para a mesquita para conversar com Deus, pois só aumentaria os ascetas mais um, e não haveria o que relatar e não o que estranhar. Porém, ele acetificou o mundo, em sendo o homem do mundo, ao qual lhe coube geri-lo e que nas suas mãos, após o destino, está a decisão de saneá-lo e não corrompê-lo. ele está na tempestade e não se molha, e está no fogo e não se queima. Ele é um asceta, porém em sua cabeça há a mente de um sábio, em seu peito, há o coração de um bravo, e na sua boca, há a língua de um literato. Daí, administrar com sua mente este reino imenso, em questões judiciais, financeiras, internas e externas, na paz e na guerra, sendo o juiz, o jurisprudente e o mestre. Assim, ele o administrou com a melhor das administrações e com o maior exercício da retidão. Com isso, fincou a segurança, fez adormecerem as rebeliões, assentou os que haviam se levantado em oposição, calou docilmente os críticos dos Omíadas, e estenderam aos mãos aos xiitas e protestantes, o egípcio e o iemenita, o preto e o vermelho, e tornaram-se companheiros prados o lobo e a ovelha. Ele encara com o seu coração os acontecimentos da vida que retrocediam após o embate, tal qual as vagas sobre as pedras da praia, enquanto confeccionava com a sua elucidação a sabedoria maior de uma educação imortal. Sim, ó forasteiro !, este é o lar do Mandatário dos Crentes, não o desconsidere por ser pequeno e estreito, a ausência de adornos nas portas e nas paredes, e de não haver guardas nas portas, nem impedidores (tradução literal da palavra secretário em áárabe) do acesso ao mesmo. Este lar é mais dadivoso que qualquer palácio sustentado pelo solo da terra ( Hoje, onde outrora fora esta residência, funciona a Escola Samissatia de Damasco).
Retornou então o samarkandiano, e quando aproximou-se da casa, ouviu balbúrdia e viu dois meninos, sendo que um deles feriu o outro, causando um ferimento grave e observou o Califa acercar-se, pessoalmente, dos dois meninos e constatar o gravidade do ferimento, no que pergunta ao Samarkiadiano o que ele deseja, e este lhe responde: Fui injustiçado ó Mandatário dos Crentes, no que é retido pelo Califa que lhe manda aguardá-lo até que ele retorne, enquanto carregava ambos os garotos para dentro de sua casa. Eis que o Samarkandiano ouve os lamentos de uma mulher que gritava, "meu filho, meu filho". Aí, ele ouve a estória, e toma conhecimento de que aquela mulher é a mãe do menino ferido, esposa do Califa, e consequentemente, o garoto ferido, é filho do Emir dos Crentes. Logo depois, vê e ouve outra mulher adentrar a casa, dizendo de igual modo, "meu filho, meu filho", tenham piedade dele que é órfão e pobre. Aí, já lamentava interiormente, serem vítimas de execução sumária, a mulher e seu filho que houvera ferido o filho do Califa, que juntamente com este menino, saíram para brincar com a garotada, afinal ele é uma criança sem pecado, e não responsável pelo que fez. E eis que o Emir dos Crentes diz: Acaso não foi lho dada a pensão ? - e a mãe do garoto responde - Não ! - aí disse o Emir: - Nós o registraremos como zuriat ! (impúbere, ainda sem meios para se auto-sustentar) . A mulher sai agradecida e benfazeja, enquanto o samarkandiano ouve Fátima, filha de Abdul Malik dizer: Tu o encorajaste a ferir o nosso filho uma outra vez, no que foi respondida pelo emir, com as palavras - Você o assustou !
A seguir, saiu o Califa, e chamou o samarkandiano, e perguntou-lhe o que desejava, no que esse reclamou de Kutaibat, e que este adentrou Samarkand, sem conclamar a sua população para o Islam, nem tampouco declarou beligerância a cidade, ou sequer dialogou. Disse então o Khalifat: Por Deus, nosso Profeta não nos ordenou a injustiça nem nos permitiu praticá-la e Deus obrigou-nos a justiça entre os muçulmanos e os não muçulmanos. Menino, disse o Califa a seu filho, traga-me um cálamo e um papel. E o menino trouxe-lhe um papel do tamanho de dois dedos. No que ele escreveu algumas linhas, as selou e disse ao samarkandiano: - Leve-o ao administrador da cidade !
Assim, retornou o emissário de Samarkand, toda a distância que havia percorrido anteriormente, desta vez no sentido de regresso ao seu país, e toda a vez que chegava a uma localidade e adentrava numa mesquita e perfilava-se junto com os demais, na linha para a oração, ombro a ombro, irmão com irmão, foi compreendendo cada vez mais o mais o que é o Islam. Assim, sentia-se ele ser cada vez mais e mais, membro desta grande associação de direcionados, exclusivamente, para aquele a quem enalteciam em suas línguas, em seus corações e no conteúdo das suas preces, e que não é outro que não DEUS, o Criador. Uma vez que são liderados em suas preces, por qualquer um deles, sem a postura de um sacerdote, e que oram em qualquer terreno e daí não precisarem nem de templos nem de estátuas. Todos ficam de pé num alinhamento único, sem haver grande ou pequeno, nem tão pouco mandante ou mandado, e por isso, sentiu a grandiosidade destes círculos que começam junto a Caaba e que passam pela alegria e pela tristeza, pelo habitado e pelo desabitado, pela cidade e pela aldeia. Neste perfilamento, ficam de pé, os adoradores de DEUS, ascetas da noite e empreendedores do dia. Tementes são os seus corações, os seus olhares, seus membros, diante de DEUS, Senhor dos Mundos, e daí não super-valorizarem todo este mundo cheio de prazeres e as suas dores.
Longe, desta vez, de sentir o peso da vastidão do Mundo Islâmico, uma vez que este passou a ser também o seu mundo. Por isso mesmo, não sentiu nesta parte da viagem, qualquer dificuldade ou sequer cansaço. Toda a vez que terminava a oração, encontrava na mesquita (em cada localidade por onde passava, havia uma) alguém que lhe perguntava sobre si e como estava. E quando este sabia ser ele um forasteiro , o hospedava em sua casa e concedia-lhe do seu apoio.
Assim, comparava entre a sua vinda como um não adepto e o seu retorno como muçulmano, e como houvera sentido a distância do caminho, a dor e a solidão da ida, e como desfrutou do paraíso e como era carregado nas palmas das mãos dos irmãos, e aí, apercebeu-se do que para os outros, nã:o muçulmanos, parecia ser um segredo, quanto ao sustentáculo e à beleza desta religião. Assim, chegou ao templo em Samarkand, e agora, as estátuas e suas lamparinas não o amedrontavam mais, e o seu coração nãão ficou repleto de temores ou melindres, como houvera acontecido da vez em que, naquela noite trevosa, recebera sua incumbência dos poderosos de Samarkand. Não haviam mais as trevas, eis que o Islam lhe iluminara a vida, e pode ele separar a ilusão e a falsidade da Verdade e da Sinceridade, entendendo que os ídolos que estavam a sua frente, foram esculpidos por mãos humanas, e por seus escultores, denominados deuses, que em nada auxiliam ou prejudicam, e nem tampouco impedem o golpe do machado, nem a chama do fogo.
Porém, ele ocultou a sua nova condição de muçulmano, e bateu na porta a batida secreta, e os sacerdotes o viram, depois de já acharem que não o veriam jamais. Chegaram até ele, e ele descreveu-lhes o que viu, e eis que os olhos dos outros quase que saíram de suas órbitas de tanto espanto, e certificaram-se de que lhes veio a resolução, e ordenaram-lhe que carregasse a carta selada, imediatamente, ao administrador, e eis que ela contém a ordem do Califa, determinando a nomeação de um juiz que julgaria a questão, levada a ele pelo emissário dos sacerdotes de Samarkand, contra Kutaibat, e que a sua sentença fosse, o quanto antes, implementada. Recebida a carta e constatada a sua autenticidade, nomeou o Administrador da cidade, um juiz, de nome Jumayia Ibn Hoder Al Begii, que determinou o dia e a hora do julgamento.
Quando o samarkandiano voltou e informou aos sacerdotes o acontecido, um deles, o sacerdote-mor, alterou sua fisionomia, após ter sorrido, tal como as negras nuvens cobrem a luz vinda do Zênite, no dia claro, e escondeu-se a luminescência da esperança que lho aparecera ao ponto de ter achado a alvorada verídica, agora reduzida a um simples lampejo já findo na escuridão. Certificou-se o sacerdote-mór, que este era mais um episódio novo no livro de traições dos muçulmanos. Chegou o dia prometido, que não tardou a chegar, e no horário aprazado, aglomeraram-se os habitantes de Samarkand. Vieram os sacerdotes ocultos, nunca dantes vistos por ninguém, e veio o comandante que sucedeu a Kutaibat, e assim, teve início o julgamento no interior da mesquita, na qual sentaram-se todos aguardando o juiz. Os sacerdotes não tinham nenhuma esperança, e o que poderiam esperar? Que o juiz muçulmano lhes desse ganho de causa, sentenciando a expulsão dos muçulmanos de Samarkand ? Que sentenciasse para eles os vencidos, os diferentes do juiz em sua religião, aqueles a quem não sobrou nenhum poder e nenhuma força. E contra quem sentenciaria ? Contra o sucessor do comandante que alcançou Samarkand, cujas terras orientais, jamais foram pisadas por nenhum outro comandante mais vivo, nem mais conquistador, qual um Alexandre dos árabes, Kutaibat ?
Os corações palpitavam aguardando o mais estranho julgamento de que a historia teve notícia, e todos os olhares estavam direcionados a porta da mesquita, por onde adentrara o juiz, sozinho, e em quem fora colocada a maior responsabilidade posta sobre o pescoço de um juiz, sob forma de impasse. De um lado, o interesse inteiro de uma nação e a soberania de seu governo e o grande país, agora sob a égide da bandeira do Islam, dominado pelos seus adeptos e ali o justo-veredito. é aí que escorregam as pernas dos juizes, e são experimentadas as consciências. Nosso companheiro samarkandiano lia as dúvidas e as vacilações nos rostos dos habitantes da cidade, e muito mais no rosto dos sacerdotes, tal qual se lê a manchete de um jornal, exposto a sua frente. Porém, os muçulmanos não duvidavam e não vacilavam quanto a que o justo e o verídico está acima dos interesses da pátria. E o que é a pátria ? A pátria do muçulmano é a sua religião e onde quer que conclame o muazzin para a prece,- ALLAHU ACBAR (DEUS É MAIOR) - aí está a sua pátria, e o seu empenho pelo que é justo e verdadeiro. E quando advém o justo-verídico arfa com ele, toda a sorte de falsidades, mesmo que nela haja vantagem para a nação e que traga riqueza ou vantagem material maior.
Olharam todos e viram um homem com aspecto de beduíno, caquético, baixo, pálido com um pano sobre a cabeça e seguido por um impúbere. Veio e sentou no chão, adiantando o dorso, enquanto o impúbere ficou de pé, sobre a sua cabeça. No íntimo de cada um, a indagação pairava: - É este o homem que veio sentenciar o sucessor de Kutaibat, o Magnífico, e contra o interesse de seu Governo ? É este o Juiz dos Muçulmanos ? Desse modo, apagou-se a última chama de esperança da alma dos sacerdotes. Iniciou-se o procedimento de instrução para final julgamento. Chamou o impúbere pelo nome do Administrador da Cidade, sem qualquer tipo de pompa ou circunstância, e este atendeu prontamente, sentando-se diante do juiz, após o que, chamou desta vez o impúbere, pelo nome do sacerdote-mor de Samarkand, a quem conduziu e fê-lo sentar-se ao lado do outro.
Assim, teve início o julgamento. Disse o juiz, com voz baixa e fraca, ao sacerdote: - O que dizes ? - ó enaltecível, o comandante Kutaibat Ibn Muslim, adentrou nosso país ardilosamente, sem chamar para o confronto e nem tampouco conclamou-nos a abraçar o Islam. - Disse o juiz ao administrador: - O que dizes ? - Disse: Que Deus conceda retidão ao juiz. Engodar é parte da guerra, e este é um país enorme que Deus salvou através de nós do Kufr (encobrimento), e o concedeu aos muçulmanos. - Retornou o juiz indagando: Acaso conclamaram os seus habitantes para o Islam, depois a jiziat (compromisso de permitir o livre trânsito da mensagem do Islam a quem assim o quisesse), e depois o embate? - Respondeu ao juiz o administrador: - Não! - Mais uma vez disse o magistrado: Tu confirmastes, e Deus não fez triunfar esta nação senão no trilhar da religião e no evitar da conspiração. E nós, juro por Deus, O Altíssimo, Clemente e Misericordioso, não saímos de nossos lares senão no esforço (jihad em árabe), na senda de Deus, Absoluto. Não saímos para possuir a Terra e nela altivar senão pelo que é justo e verídico. Sentencio que os muçulmanos saiam da localidade de Samarkand, e devolvam aos seus habitantes o solo que ocuparam. E só depois os conclamarão ao Islam, e se necessário for, com eles se confrontarão, após declararem guerra. Eis aí, a prolação da inacreditável sentença.
A decisão do magistrado, foi vista e ouvida pelos sacerdotes ocultos de Samarkand, e por todos os seus habitantes, porém, todos desmentiam os seus olhos e suas orelhas, e acharam estar num sonho e permaneceram impávidos, ao ponto da maioria não perceber que o julgamento já se encerrara e que o juiz e o administrador já haviam se retirado. Nosso companheiro samarkandiano, observava o rosto do sacerdote-mor, e aí, sentia que a luz do justo e do verídico resplandecera sobre o seu coração, tornando perspicaz com o isolamento e a contemplação. Eis que o sacerdote vistoriava o seu mundo, que outrora amara e o preferenciara, e agora, enxergava estreito e abandonado, contemplando o mundo do Islam e a amplitude e a grandeza desse dimensionamento moral como forma de adoração a Deus, O Eterno.
O Islam, solo abundante onde nascem e florescem árvores que com fartura oferecem frutos para quem semeou o que é bom, e para quem plantou a semente do que é justo e do que é belo. De igual modo, indagava no âmago da sua alma, e o que é o seu mundo ? o mundo sombrio dos ídolos de Samarkand ? Uma solução de continuidade obscura no meio da rocha inatingível pelo raio de sol ou pelo raio do luar, nem pelas flores e seus perfumes, na estação da primavera, nem pela beleza das mesquitas, nem pelo galardão e pela altivez da fé. Iluminou a luz, o seu coração, e então viu que a sua crença, seus ídolos, seu templo, e tudo o mais, eram inócuos e inconsistentes, bem diferentes do Islam, da grandiosidade de Deus, O Único e Eterno, e dos templos edificados pelos muçulmanos, construídos em lugares onde jamais ouvira, sequer em que direção ficavam, quanto mais os respectivos nomes. Como comparar o mundo sombrio com o mundo das trevas. Como comparar o perfume com o mau cheiro, como comparar o teto rasteiro de seu templo,. com a amplitude do céu ? Como ? Antes que algo se pudesse esperar, ele, o sacerdote-mor, renegou a sua religião, saiu do templo, do qual estava proibido de sair, e para onde nunca mais voltou, de igual modo ao recém nascido, que não consegue jamais retornar ao ventre materno, após ter visto a luz do dia e a vastidão do universo.
Assim, era impossível que ele, retornasse aos ídolos de pedra, após conhecer o Senhor dos senhores, o Rei dos reis, O Juiz dos juizes, DEUS O Altíssimo, Onisciente, Onipresente e Onipotente, Soberano do Universo. Daí a diante, em curto espaço de dias, desapareceu a religião do templo, que já findara sua existência, nos breves minutos após a prolação da sentença assombrosa e assombrante, no igual espaço de tempo em que tocavam os tambores e as flâmulas se agitavam no ar, com a marcha do exército muçulmano, rumo para fora dos limites de Samarkand, em cumprimento da sentença, prolatada por um ser humano fisicamente franzino, mas moralmente gigantesco, e que com sua decisão, enxotou de forma seca e simples este mesmo exército ante o qual, nada ficou de pé, desde Yathreb, na Península Arábica, até além de Samarkand, e que esmagou os exércitos do Xá da Pérsia, do César, e de muitos outros reis.
A voz quase inaudível de um homem caquético, que não contava sequer com a proteção de uma guarda pessoal, além do menino que o secretariava, num julgamento de minutos, e que nem por isso teve contra ele qualquer tipo de crítica ou protesto por parte dos que agora, já haviam se retirado. Por outro lado, este exército, posto fora de Samarkand, se anunciaráá, novamente, e no caso da não admissibilidade da divulgação da Mensagem do Islam, marchará para o combate sobre Samarkand, mas eis que onde houvera escuridão, fez-se a luz. E o sacerdote voltou-se aos seus patrícios e indagou: O que dizem ? e obteve a resposta daquele que fora emissário de Samarkand : - Quanto a mim, testemunho que não há outro Deus que não ALLAH e que Muhammad é seu servo e mensageiro, pelo que respondeu o sacerdote: - E eu também testemunho.
A partir daí, como um abalo sísmico, a louvação a DEUS e a declaração do testemunho da sua Unicidade e da sua Mensagem, e não houve combate, não houve confronto, não houve vencedor nem vencido, houve, sim, irmãos que de forma espontânea e fraterna abraçaram a perspectiva que lhes era apresentada com o Islam, sem qualquer tipo de diferença ou discriminação entre árabes e não árabes ou de qualquer outro tipo de diferença. Ficou claro para todos, que a preferência de Deus, é por aquele que conserva a retidão, a bondade e as boas ações. E Samarkand passou a compartilhar do Islam e não o deixará jamais.
Tradução do original em árabe para o português por Kemel Ayoubi, em março de 1994.
Autor: Áli Attantauí
Fonte: sbmrj.org.br