Exame das circunstâncias que motivaram as revoltas dos malês

Nos dias atuais, cresce, pouco a pouco, uma grande vertente de revisionismo histórico, sobre vários aspectos das nações, povos e civilizações, além de questionamentos e re-análises sobre em que circunstâncias se deram várias das chamadas descobertas humanas.

A chegada de expedições e povos antes dos portugueses e espanhóis às terras do "Novo Mundo", nos séculos XV e XVI, é um desses pontos. Muito antes deles, aproximadamente 8 séculos antes, à época do Califado de Córdoba, aqui chegaram embarcações vindas da África, Ásia e Península Ibérica.

Ao contrário do que muitos imaginam, os muçulmanos chegaram ao Brasil bem antes das insurreições populares, que ficaram conhecidas como as Revoltas ou Guerras dos Malês, ocorridas na Bahia, no século passado.

Em novembro de 1.997, segundo matéria publicada na revista ISTO É, o historiador Jorge Couto, professor da Universidade de Lisboa, alega que, já em 1498, uma caravela, comandada pelo navegador Duarte Pacheco Pereira, aportava no Brasil, antes, portanto, de 22 de abril de 1500, data oficial da descoberta do Brasil, por Pedro Álvares Cabral. Jorge Couto se refere ao manuscrito "Esmeraldo de situ orbis", anagrama com o nome do rei de Portugal, Dom Manuel I, Duarte "Eduardus", descobridor "de situ orbis", com o significado "Dos sítios da terra". Dentre outras coisas, isso demonstra as circunstâncias obscuras que acabaram por distanciar a verdade factual das bases da história oficial brasileira.

Além disso, essas mesmas circunstâncias, que delimitaram e dividiram o Continente Sul-Americano entre a Espanha e Portugal, muito antes da última configuração da repartição de terras do "Novo Mundo", com negociação intermediada pela Roma Papal, anos antes da assinatura do texto final do Tratado de Tordesilhas, em 1.494 - com início das negociações vários anos antes de 1.494,    - demonstram, de forma cabal, que se foi o navegador genovês Cristóvão Colombo quem "descobriu" a América, em 1492, não se poderia dividir a América do Sul, ao comprido, de norte à sul, por simples adivinhação da sua extensão territorial, salvo se, também por ali "navegassem" os "descobridores" no tempo.

Nesta etapa, apenas exporemos aos doutos membros do Instituto de Geografia e História Militar do Brasil, sobre o tema que tem sido muito abordado no meio acadêmico, e motivo pelo qual fomos convocados pelo DD. Coronel e Professor Ariovaldo Silveira Fontes, presidente da renomada FUNDAÇÃO OSÓRIO, importantíssimo estabelecimento de ensino, órgão do Ministério do Exército e parte integrante do patrimônio da Cultura e Educação do Brasil. O tema abordado é a Revolta dos Malês: Os aspectos da conjuntura política e sócio econômica à época em que ocorreram, e demais circunstâncias da problemática social em sua época, e o que, realmente, intensionavam os que dela participaram.

Estamos falando sobre o Brasil nos seguintes períodos de tempo: Província da Bahia, então capital da Colônia, no início do século XIX, logo após a chegada da Família Real Portuguesa, que, logo a seguir, rumou para a Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, então promovida a Capital do Reino Unido do Brasil e Algarve, que em 1822,  seria proclamado Império do Brasil.

RAIMUNDO NINA RODRIGUES, em sua obra Os Africanos no Brasil, e seu discípulo mais ilustre, ARTHUR RAMOS, no livro As Culturas Negras no Novo Mundo, falam da trajetória da chegada da religião do Islam, sistema completo de vida, às diversas regiões da África, onde sua divulgação, de forma coerente e responsável, resultou, posteriormente, no fim das lutas tribais.

Em algumas regiões, como em Tombuctu, no Mali, MANSA KANGO MUSSA, governante muçulmano nativo, fez florescer, no século XII, importante civilização que acabou servindo de modelo para Haussas, Pehls, Fulanis, Bambaras e várias outras etnias, que mais tarde chegariam ao Brasil, trazidas pelas mãos de traficantes de escravos. Muitos desses escravos, sudaneses ou bantus, ou eram muçulmanos convictos ou viriam a aderir ao Islam, já no Brasil, como é o caso dos Nagôs e de outros grupos com língua própria. Os Haussas tinham, inclusive, sua língua estudada por comerciantes portugueses, devido ao interesse no intercâmbio comercial com aquela região, que hoje corresponde a parte do Mali e da Nigéria. NINA RODRIGUES reproduz, na obra acima citada, a fotografia de um açougue na Baixa dos Sapateiros, em Salvador, Bahia, onde, sobre a porta, lê-se a inscrição, em língua nagô: KOSI OBÁ KAN AFI OLORUN, cujo significado é o testemunho de fé de todo muçulmano e que se traduz por: NÃO HÁ DEUS OU DIVINDADE ALÉM DE DEUS ÚNICO, e que em árabe soaria como LA ILAHA IL ALLAH.

Além de NINA RODRIGUES e ARTHUR RAMOS, outros nomes contemporâneos, entre historiadores, sociólogos, antropólogos, etnólogos e pesquisadores, se interessaram pelo tema e se ocuparam em pesquisar o fenômeno social resultante da mesclagem cultural nos meios "intra-africanos" e "extra-africanos", com suas respectivas religiões, características étnicas, antropológicas e sociológicas, seja durante o período em que vigiu o sistema escravagista ou depois dele. Dentre os grupos humanos estudados, mereceu destaque especial os MALÊS. Todavia, não nos parece que se tenha alcançado a compreensão exata do que ocorreu verdadeiramente. Ao se preocuparem com a análise dos efeitos, não conseguiram determinar as causas de tais procedimentos.

É como nos dias atuais, onde a imagem virtual e deformada que alguns possuem do Islam e dos muçulmanos gera preconceito e incompreensão.

A idéia inicial que se tem de que o Islam é a religião dos árabes, ou que é antagônica às demais religiões existentes, ou que é uma mescla do judaismo e do cristianismo, não é verdadeira. O desconhecimento do que é o Islam leva a aforismos tais como "o Islam expandiu-se pela força da espada". Outro absurdo é a distorção do conceito de GUERRA SANTA, querendo designar, de forma espúria, a palavra árabe JIHAD, que significa EMPENHO, ESFORÇO. Cabe assinalar, aliás, que o termo Guerra Santa foi empregado pelos Cruzados quando invadiram o Oriente.

Aquilo que foi identificado como Expansão do Islam ou, ainda, IMPÉRIO ISLÂMICO, nada mais foi do que a adesão de pessoas, populações, povos e nações ao Sistema Revelado, que foi apresentado, inicialmente, pelo Profeta Muhammad (Maomé) e seus companheiros e seguidores, a partir da revelação do Alcorão. A mensagem que está contida no Alcorão Sagrado, dentre outras coisas, nos diz:

"Em nome de Deus, o Clemente, o Misericordioso. Louvado seja Deus, SENHOR DOS MUNDOS, O CLEMENTE, O MISERICORDIOSO, SOBERANO DO DIA DO JUÍZO, Só a Ti adoramos e só de Ti imploramos ajuda! Guia-nos à senda reta, À senda dos que agraciaste, não a dos abominados, nem a dos extraviados." (Cap. 1:1/7)

"Eis o livro que é indubitavelmente a orientação dos tementes a Deus; Que crêem no incognoscível, observam a oração e gastam daquilo com que os agraciamos; Que crêem no que te foi revelado, no que foi revelado antes de ti e estão persuadidos da outra vida. Estes possuem a orientação de seu Senhor e serão os bem-aventurados." (Cap. 2:2/5)

"Deus! Não há mais divindade além d’Ele, Vivente, Subsistente, a Quem jamais alcança a modorra ou o sono; Seu é tudo quanto existe nos céus e na terra. Quem poderá interceder junto a ELE sem a Sua anuência? ELE conhece tanto o passado como o futuro e eles (os humanos) nada conhecem de Sua ciência, senão o que ELE permite. Seu trono abrange os céus e a terra, cuja preservação não O abate, porque É O INGENTE, O ALTÍSSIMO. Não há imposição quanto à religião, porque já se destacou a verdade do erro. Quem renegar o sedutor e crer em DEUS, ter-se-á apegado a um firme e inquebrantável sustentáculo, por que DEUS É ONIOUVINTE, SAPIENTÍSSIMO."   (Cap. 2:255 e 256)

"O humanos, em verdade, Nós vos criamos homens e mulheres e vos dividimos em povos e tribos para que vos reconhecesseis uns aos outros. Sabei que o mais honrado dentre vós, ante DEUS, é o mais temente. Sabei que DEUS é SAPIENTÍSSIMO e ESTÁ BEM INTEIRADO." (Cap. 49:13)

Dentro dos aspectos da coerência e da pureza de intenção, e do real conteúdo da mensagem, muito mais poderíamos citar. Temos certeza de que, se assim o fizéssemos, muitos se espantariam, tal o número de inverdades e conclusões errôneas a respeito do Islam e dos muçulmanos, assacadas de forma irreponsável e absurda. Mas, como não pretendemos produzir um libelo e, sim, explanar as características reais das revoltas dos Malês, passemos ao assunto.

Os ideais dos Malês distanciavam em muito daquilo que é imaginado, quando se diz que foi uma luta religiosa e racial, buscando simplesmente o fim da escravidão. Os Malês, tidos por vários escritores como "muçulmanos ortodoxos", acreditavam na Mensagem revelada ao Profeta Muhammad, o Mensageiro de Deus, que a paz e as bênçãos de Deus estejam com ele.

No livro Fluxo e Refluxo do Tráfico de Escravos entre o Golfo do Benin e a Bahia de Todos os Santos, de Pierre Verger, 1987 - São Paulo, Editora Corrupio, encontramos o referencial das relações "econômico-filantrópicas anglo-portuguesas" e sua influência no tráfico de escravos no Brasil:

"Em 1807, dois acontecimentos vieram a mudar completamente as condições das relações comerciais entre a Bahia e a Costa da Mina. O Parlamento inglês vota a abolição do tráfico de escravos e, após ter repelido aquela lei durante 7 anos consecutivos, vai esforçar-se para fazer adotar seu ponto de vista pelas outras nações. Em 27 de novembro de 1807, fugindo das tropas de Napoleão, o Príncipe D. João VI, regente de Portugal, embarca precipitadamente de Lisboa para o Rio de Janeiro, acompanhado de sua esposa, a Princesa Carlotta Joaquina, e de sua mãe, a Rainha Maria, cuja loucura tinha se acentuado fazia já muitos anos, mas que, apressada para embarcar, julgou entretanto e muito judiciosamente a situação, declarando: ‘… não tão depressa, pareceríamos estar fugindo …’ Mais de 13.000 pessoas da corte seguiram e empilharam-se com todas as riquezas transportáveis do reino nos navios da esquadra e em todos os navios mercantes disponíveis. D. João, após ter longamente hesitado entre uma aliança com a França ou a Inglaterra, terminou cedento à pressão de Lord Strangford, o embaixador britânico, que lhe tinha informado que a Inglaterra ‘OCUPARIA’ o Brasil, por medida de segurança, se o príncipe e sua família viessem a cair nas mãos de Napoleão. O General Junot chegava em Lisboa em 30 de novembro, pela manhã, algumas horas depois da partiada da frota que, para maior angústia dos fugitivos, ficou retida 2 dias no porto devido a ventos contrários. O príncipe regente foi acolhido em sua passagem pela Bahia, de 22 de janeiro a 26 de fevereiro de 1808, pelo Governador João Saldanha da Gama Melo e Torres, Conde da Ponte. Dom João, constatando que então não havia mais relações comerciais possíveis com Portugal, ocupado pelos franceses, abria os portos do Brasil aos navios estrangeiros, por um decreto provisório de 28 de janeiro de 1808. … As pressões econômicas e políticas inglesas seriam exercidas diretamente sobre o Brasil e manifestavam-se em um sentido que desorientava os comerciantes deste país. Os ingleses não tinham hesitado em fazer guerra, um século antes, para obter o contrato de fornecimento de escravos do "Assiento" espanhol, mas tinham-se tornado fervorosos abolicionistas, tendo, entretanto, modificado completamente a estrutura econômica das ilhas britânicas. Assim esclarece DIKE: ‘No fim do século XVIII, uma era de caráter industrial sucedia à uma época de caráter comercial. Na Grã-Bretanha, onde a mudança industrial era mais marcante, o comércio de escravos, perfeitamente ajustado ao sistema da época comercial, tinha se tornado antiquado devido aos rápidos progressos tecnológicos e da produção industrial. A abolição do comércio de escravos era, pois, somente uma manifestação da passagem da era comercial àquela da revolução industrial.’ As campanhas abolicionistas de Wilberforce conheceram o sucesso, em parte porque seus fins humanitários correspondiam aos interesses daquela indústria nascente. A extinção do "Assiento" inglês do fornecimento de escravos às Indias de Castilha, a revolta das colônias da América do Norte, a declaração da independência de 4 de julho de 1776, e a guerra que se seguiu até o tratado de paz de Versalhes, em 3 de setembro de 1783, tinha igualmente dado um golpe sério no comércio dos escravos pelos ingleses. … A história da luta empreendida pela Inglaterra durante aquela primeira metade do século XIX para garantir, por uma política de livre comércio, a saída de seus produtos manufaturados, não entra no quadro deste trabalho, a não ser na medida onde ela afeta os interesses da Bahia e suas relações com a Baía de Benin. … A Inglaterra entendia que todo o resto do mundo seguiria sua nova política. A questão da abolição dos escravos foi durante a primeira metado do século XIX, uma das principais preocupações do Foreign Office, poderosamente ajudado nesta tarefa pela ROYAL NAVY. … Em 1808, a abertura dos portos do Brasil, permitia à Inglaterra relações diretas, mas seus produtos manufaturados pagavam os 24% de direitos alfandegários aplicáveis a todas as nações estrangeiras. (o grifo é nosso e perguntamos: Que nações estrangeiras?). … Portugal, ocupado momentaneamente pelas tropas de Napoleão, devia perder para sempre sua soberania sobre a antiga colônia do Brasil, tornado reino, quando da chegada da corte em 1808. Uma só tentativa séria foi feita, em 1822, para restabelecer este poder, mas ela só teve como resultado o de provocar a independência política do Brasil. Para obter sua liberdade econômica, o Brasil tinha, pois, que lutar mais contra a Inglaterra do que contra Portugal, sua antiga metrópole. A luta entre os dois países não se caracterizava, entretanto, por guerras de conquista ou de libertação. … Nesta nova era que se abria, era muito difícil ao Brasil saber se se tratavam de interesses econômicos, de filantropia ou de industrialização. Antigamente lhe entregavam patentes para ir fazer o tráfico na Costa da Mina, declarando que: ‘… o grande serviço que faz à sua Majestade indo procurar escravos naquela costa e trazendo-os para esta cidade da Bahia, em razão da grande falta que se faz sentir nos campos de cana e nas fábricas de açúcar'. A teoria da "salvação de almas pagãs que levavam à cristandade" era substituída por aquela da: … injustiça e da má política do comércio dos escravos e das grandes desvantagens que nascem da necessidade de introduzir e de renovar continuamente uma população insociável e artificial para assegurar o trabalho e a indústria do Brasil."

Assim, de forma notória e explicitada por um critério de 5 pesos e 15 medidas, imaginemos como seria, ou como foi, o efeito das aspirações inglesas a respeito da nação brasileira. Imaginemos, ainda, o esforço dos nobres e autoridades portuguesas aqui presentes, na defesa do "legítimo" interesse do seu país, primeiro colonizador!

As pressões de ordem econômico-financeiras e os consequentes custos sociais impostos a uma população sem qualquer perspectiva de futuro, agravadas ainda mais pelas manobras comerciais levadas a efeito através de contratos e leis unilateralmente dirigidas, gerando insatisfação e impondo às pessoas um sofrimento cada vez maior, acabaram por solapar a dignidade e a cidadania nacional. A crise, que teve como resultado o pânico, levou ao medo de uma ação armada para garantir o poderio inglês sobre o Brasil. A desumanidade e a repressão, tanto dos senhores de escravos contra esses e dos mais poderosos sobre os negros já libertos e demais populações mestiças e brancas sem recursos, tomaram vulto insustentável, ante a loucura e o desiquilíbrio da corte portuguesa no Brasil, cada vez mais encurralada pelos ingleses, isolada do mundo, sem qualquer tipo de apoio ou socorro externo.

Se imaginarmos estas cenas, veremos uma desordem social surrealista, onde o que menos contava era o interesse nacional da nação brasileira. O açúcar, o algodão e o tabaco, produzidos com o sacrifício da mão de obra escrava, eram entregues com exclusividade aos ingleses, que, apesar de proibirem a chegada de africanos no Brasil, não se constrangiam em auferir lucros decorrentes do trabalho escravo. O que dizer então do ouro, da prata, das pedras preciosas, da madeira e de tudo o mais, sabe Deus o que! Na época da Guerra da Independência, em 1822 e 1823, houve a destruição de engenhos e canaviais e a cidade de Salvador foi ocupada pelos portugueses, que confiscaram todas as quantias apuradas com a "entrega" dos produtos brasileiros. Garantiam, assim, a sobrevivência de uma casta fidalga e os interesses da corte portuguesa.

Pressionadas pela enorme insatisfação popular, as autoridades baianas anteviam o potencial explosivo de uma revolta causada pelos acontecimentos decorrentes do caos social existente. O presidente da Província da Bahia alertava o Governo Nacional sobre a escalada vertiginosa da alta dos preços dos gêneros de primeira necessidade, alavancados cada vez mais pelos atravessadores portugueses e ingleses. Em determinada etapa, uma forte corrente gerada pelo grande derrame de moedas de cobre falsas, causou mais desespero, com uma injustificada inflação e aumento de preços. Do cobre, facilmente encontrado em placas que eram utilizadas na construção naval e nos engenhos de açúcar, foram falsificadas tantas moedas que, no final dos anos 20 do século passado, o Governo Nacional desistiu de resgatar o derrame.

No livro Rebelião Escrava no Brasil - a história do levante dos malês 1835, de João José Reis, Editora Brasiliense, 1a. edição em 1986, lemos o seguinte trecho:

"…Ainda no final de 1832, as queixas locais foram transmitidas ao governo do Rio de Janeiro, através de veementes cartas do Conselho Geral da Província: ‘meios revolucionários se têm insinuado na massa da população como o único garante contra o desprezo e indiferença com que se continua a encarar o maior dos males.’ Em julho de 1833, o presidente reafirmaria para o governo central que o ‘clamor tem se tornado geral’ e transmitiria as advertências dos juízes de paz de que ‘não era possível aplacar o desespero da classe menos abastada de pão’. Dois meses mais tarde, o próprio presidente lamentaria que os pobres quisessem forçar o Governo, ‘pela violência’ segundo ele, a adotar medidas definitivas contra a inflação e pediria intervenção federal para sanear o meio circulante da Bahia. Finalmente, em 1834, o império patrocinaria uma outra operação de resgate do dinheiro falso, mais bem sucedida que a primeira, mas que não resolveria o problema completamente."

Para agravar a situação, a seca havia diminuido em muito as áreas cultiváveis, gerando escassez de alimentos e, consequentemente, o surgimento de moléstias decorrentes de um quadro de subnutrição e falta de água.

As rebeliões dos malês foram sempre respaldadas pelo estado de necessidade da condição humana e do direito à vida, não só dos africanos muçulmanos mas da Nação Brasileira, que necessitava libertar-se dos vários tipos de dificuldades que ameaçavam a Legítima Soberania da População Brasileira. Os dados cronológicos das diversas revoltas são os seguintes: 28 de maio de 1807; 4 de janeiro de 1809; fevereiro de 1810; 28 de fevereiro de 1814; janeiro e fevereiro de 1816; junho e julho de 1822; 25 de agosto e 17 de dezembro de 1826; 22 de abril de 1827; 12 de março de 1828; 10 de abril de 1830; 25 de janeiro de 1835.

Na obra de Pierre Verger, constam as informações de que os revoltosos, separados em dois grupos, percorreram a cidade correndo, atacaram o Palácio do presidente da Província, enfretaram uma patrulha de 8 soldados, uniram-se a outro grupo de revoltosos, vindos do bairro da Vitória, após enfrentarem as tropas do Forte São Pedro (Artilharia). Invadiram o quartel da polícia, no bairro da Mouraria, enfrentando duas fragatas de guerra que estavam ancoradas, restando 40 mortos e numerosos feridos, além de vários que morreram afogados, buscando fuga pelo mar.

Na realidade, o que importa mesmo, além dos nomes e das táticas aplicadas nas revoltas, são os motivos que as geraram. Muitos, após capturados e submetidos a julgamento, sucumbiram devido aos maus tratos. Outros foram simplesmente deportados de volta para a África, de modo a garantir-se a não proliferação de uma "religião selvagem". Anos depois da última revolta, Francisco Gonçalves Martins, chefe de polícia da província, decreta sobre os que eram negros libertos, dizendo: "Nenhum deles goza de direito de Cidadão nem privilégio de estrangeiro." Mais tarde, Francis de Castelnau, Cônsul da França na Bahia, interrogou um fulani já idoso, de nome Mohammad Abdullah, que vivia na Bahia há 30 anos. Este fulani conseguiu libertar-se da escravidão porque exercia a atividade de carpinteiro. Castelnau constatou que o africano tinha instrução, sabendo ler e escrever em sua língua natal e em português, demonstrando, assim, que, após o levante de 1835, restabelecida em parte a ordem econômica, os muçulmanos continuaram integrados à nação brasileira, produzindo e ajudando na construção do país.

Vindos da Península Ibérica ou da África, muçulmanos portugueses, espanhóis e africanos já habitavam o Brasil. O jesuíta "Joseph de Anchieta" relatava, em 1583, que a população de Pernambuco era composta de 8.000 brancos, 2.000 índios mansos e 10.000 escravos. Com a chegada da inquisição às terras brasileiras, temos relatos sobre as populações do Brasil e o teor dos processos do Santo Ofício demonstram a existência de muçulmanos, com a descrição de suas organizações sócio-religiosas (v. Primeiras Visitações do Santo Officio às Partes do Brasil - Denunciações de Pernambuco, 1593 - 1595, do Visitador Heitor Furtado de Mendonça, Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Cartório da Inquisição, Códice nº 130, com edição especial do editor Paulo Prado, série Eduardo Prado, São Paulo, 1929, tiragem com 500 exemplares).

A escravidão dos povos africanos, estimulada pelo alvará de 20 de março de 1549, à época em que era rei de Portugal Dom João III, veio demonstrar que algumas etnias africanas, principalmente as provenientes da região do Grande Sudão, dominavam o manejo agrícola da cana-de-açúcar, além de possuirem adiantadas noções no fabrico de artefatos e ferramentas de ferro para diversos fins e preparo de grandes blocos de pedras, granito etc.

Em 1592, Domingos d’Abreu de Brito, fidalgo português que certamente acompanhou Heitor Furtado de Mendonça por ocasião de sua nomeação como Visitador dos Bispados de Cabo Verde, São Tomé e Brasil, escreveu ao então rei de Portugal, informando, dentre outras coisas, que …"estando eu em Pernambuquo aonde vim fazer as diligencias sobre os desservisos q El Rey de Congno tinha feito a V.Mget. tomey informação de negraços de verdade escrito q podião tirar das capitanias do Estado do Brazil QUINHENTOS MAMALUCOS, culpados e omiziados, por culpas graves,e livres. E outros de muito máo viver q as justiças podrem pois apontarão, e não demora desse grande serviço…" (manuscrito intitulado "Sumário e descrição do Reino de Angola e do Descobrimento da Ilha de Loanda e da Grandeza das Capitanias do Estado do Brazil", fonte primária arquivada no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro).

Mais adiante, o mesmo documento informa sobre a chegada e captura de pessoas na "Ethiopia", as quais sugeria, devido ao refinamento, que fôssem levadas para servir diretamente na Corte Portuguesa. Ora, a região do Congo, no centro do continente africano, foi alcançada pelos Mamelucos, que constituiram-se numa espécie de casta militar de elite. De acordo com o Novo Diccionario Encyclopedico Luso-Brasileiro - LELLO UNIVERSAL, volume III, temos: … "MAMELUCO (1) s.m. árabe mamiluk, melaka, … Em 1547, o sultão otomano SELIM apossou-se do Egypto e da Syria, que constituíam o Império dos Mamelucos; … "e no verbete MAMELUCO (2) s.m. Bras. Mestiço, filho de europeu e mulher índia.

Logicamente que aqueles "os desserviços que o Rei do Congo prestou ao Rei de Portugal", referem-se aos MAMELUCOS vindos da África. Os mamelucos empreenderam fuga para a região da Núbia, no sul do Egito, adentrando em grandes grupos para a Região do Nilo Azul, espalhando-se em busca de melhores condições, relacionando-se diretamente com os grupos étnicos já islamizados. Por circunstâncias decorrentes das lutas tribais ou étnicas do continente africano, que estimulavam a eliminação de seus inimigos através da venda de prisioneiros aos traficantes portugueses, foram trazidos para o Brasil. Aqui chegando, na Capitania de Pernambuco, organizaram-se em número inicialmente mensurado em 500. A História do Brasil não menciona mais fatos ou acontecimentos sobre tal grupo e pouco mais se soube a respeito de suas atividades. Alguns relatos dos oficiais das tropas holandesas, à época da invasão de Pernambuco, descrevem a existência de grupos organizados, com legislação própria e ordenamentos sociais, na região das Barrigas (Serra da Barriga, então Capitania de Pernambuco, hoje Estado de Alagoas). Acreditamos que, apesar do isolamento imposto como forma de sobrevivência face às patrulhas portuguesas, tais grupos tenham durado até o final do século passado.

Mais adiante, diversas insurreições pelo território brasileiro buscaram o fim da economia escravagista e a legitimação do direito à autonomia e independência da população brasileira.. Em Penedo, já então Comarca de Alagoas, em 1815, Pernambuco, São José do Maranhão, em 1772, na cidade de Vassouras, em 1838, província fluminense, na cidade do Rio de Janeiro, em 1650 e mais tarde, em 1837, e ainda presentes em alguns regimentos compostos de soldados de origem africana, vindos das cidades de São João del Rei e Ouro Preto e que participaram da Guerra do Paraguai.

Dos levantes que mais transtornaram os governantes do Brasil, antes da Proclamação da Independência, até o período da Proclamação da República, os designados como Revolta dos Malês, e, em especial, a de 1835, são os de maior destaque.

Muito mais do que esses fatos existe para ser resgatado da Verdade da História do Brasil e da Humanidade.


(*) Palestra proferida por Haidar Abu Talib, presidente da Sociedade Beneficente Muçulmana do Rio de Janeiro, em novembro de 1997, no Instituto de Geografia e História Militar do Brasil.

Por Haidar Abu Talib

Fonte: sbmrj.org.br

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