O Islam e o alimento

Faz tempo que li, na coluna social de um jornal, sobre o "horror" vivido por membros de uma comitiva brasileira, quando convidados a comerem com a mãos, em um certo país onde predominam os hábitos islâmicos.

 Desde então, me propus a escrever algo, a fim de elucidar alguns conceitos e de colaborar, nem que seja à mesa que introduz o cenário do, muitas vezes difícil, exercício das relações de entendimentos internacionais.

Numa ocasião como esta, a primeira pergunta que vem à mente é: Por que os muçulmanos não se propuseram a criar um utensílio para levar o alimento à boca, a exemplo dos pauzinhos usados no extremo oriente, ou o garfo e a faca no ocidente, assim como que permanecendo em um estágio primitivo da relação do homem com o alimento?

A propósito do assunto, poderíamos dizer que os dedos intermediam a graça e o ser humano, encurtando a distância entre ele e o alimento. Os dedos derrubam qualquer obstáculo que possa existir entre o ser humano e o alimento, são ternos e delicados e de modo algum são sugestivos de violência.

Se observarmos o talher, ele apenas estabelece um contato à distância, não intermedia a graça e é sempre um obstáculo entre o ser humano e o alimento. Por outro lado, no caso do garfo, tem-se um instrumento sólido, rude, de metal, mais parece um dardo de cabeças múltiplas, o que é sugestivo de violência. O garfo sequestra o alimento por cima, após fincar as suas pontas neste. Submete os alimentos a uma força que ultrapassa, em muito, àquela necessária para carregá-lo. Além disso, transforma-se numa violência imperceptível, praticada pelo ser humano quando se alimenta.

Quanto aos dedos, preservam a intimidade da relação entre o corpo e o alimento, quando eles o tocam diretamente, com movimentos leves e força suficiente para transportá-lo, sem pressão e/ou violência. Por outro lado, promovem uma descarga emocional quando circundam o alimento e o transportam com delicadeza.

Os dedos, ainda, transportam informações sobre o alimento, antes de sua ingestão (quente, frio, sólido). Os dedos têm funções informativas, antes das da língua (doce, salgado, amargo) e que são mais precisas que as coletadas pelos demais sentidos, como, por exemplo, a visão (cor, aspecto). Assim, os dedos são como que estimuladores do apetite e asseguradores da qualidade deste alimento. Além disso, o uso dos dedos na alimentação, confere ao corpo o papel principal, quando toca o alimento sem o uso de intermediários (uma característica do Islam: o não intermediarismo/associativismo).

Com isto, o Islam nega o intermediarismo/associativismo ("xirque"), fortalece a idéia do monoteísmo, aprofunda o relacionamento do "muslim" com a criação que o circunda, valoriza e confere ainda maior e mais prazerosa intimidade do ser humano com uma das maiores benesses de Deus (o alimento). Disse o Altíssimo:

"Aquele que fez para vós a terra um leito, o céu uma construção e fez descer do céu água, com a qual fez sair dos frutos ("rizkan"= subsistência) para vós. Portanto, não atribuais a Deus semelhantes e vós estais cientes." (Alcorão 2:23 - A Vaca).

Assim, Deus conclama o ser humano a usufruir do alimento, independentemente de sua adoção de uma crença correta, apesar de convidá-lo a usufruir desta, segundo o que Ele licitou e ilicitou.

Também lhe é dado o paraíso, bem como outras coisas, como resultado da prática das boas ações. A imagem do paraíso é fundamentada sobre dois pilares. Disse Deus:

"Alvíssaras àqueles que creram e praticaram as boas açções, que terão jardins abaixo dos quais correm os rios. Toda vez que forem agraciados com seus frutos, dirão: Eis aqui o que nos fora concedido antes! Porém, lhes foram dados semelhantes só na aparência. Ali terão cônjuges imaculadas e ali estarão eternamente." (Alcorão 2:25 - A Vaca).

Aqui o alimento é tão valorizado quanto estar só com o cônjuge no espaço infinito do paraíso, que não é o espaço astronômico. Desta forma, inclui-se o alimento e as normas de alimentação com outras, tais como a "salat" e o jejum. Disse:

"Hoje foi licitado "at-tail-ií-bét" (coisas sadias) ..." (Alcorão 5:5 - A Mesa Servida), e, logo após, no versículo 6, diz: "Ó, aqueles que creram, se levantardes para a prece, então lavai vossas faces ..."

Daí o não uso de instrumento para servir-se à mesa, que não seja a mão, ter-se fincado no inconsciente coletivo islâmico. O alimento é uma dádiva direta de Deus e a relação com este se faz diretamente, assim como a menção do nome de Deus, ao iniciar e ao terminar a ingestão. Tal menção ajuda o "muslim" na obtenção da "tak-ué" (devoção), que deriva da palavra "ku-uát" (força). Assim, o alimento é uma dupla maneira de obtenção de força e da sua correção (tal como alimentar os necessitados em Ramadan, que é o mês da correção do "muslim", quando se está impedido daquela prática). É no Ramadan que o alimento é ainda mais valorizado, quando a permissão para a sua ingesta (azan=chamamento à prece do mag-reb = pós poente) e a sua proibição (azan = chamamento à prece do fajr = madrugada) estão diretamente relacionadas à prece.

Por fim, os gestos que antecedem a algo importante conferem-lhe ainda mais solenidade, tal como o "uúdu" ablução) e a higiene dela decorrente, que valorizam a prece. O mesmo ocorre quando os dedos circundam o alimento, o acariciam, o pegam, o levam à boca. Só hão de valorizar o alimento.

Apesar de todos os povos muçulmanos desenvolverem a arte da culinária, eles preservaram a relação direta com os alimentos durante a sua ingestão, ao ponto de ser um dos comportamentos fixos diários e repetitivos e que dotam o "muslim" de uma identidade que o distingue dentre os demais.

Por Kemel Ayoubi

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