Um Califado Baiano? Os malês e a rebelião
"Essa noite é de paz, até o romper do dia."
Alcorão (97:5)
A rebelião de 1835 não foi uma explosão espontânea, resultado de apressada decisão, como por vezes acontecera com revoltas escravas anteriores. Houve um período, longo talvez, de gestão. Faltam-nos, porém, informações suficientes para contar com precisão esse tempo e os passos antecederam a revolta. Quando interrogados, os rebeldes invarivelmente silenciaram a esse respeito. Os poucos que falaram não faziam parte do núcleo central da conspiração e, portanto, não sabiam sua história completa. No entanto, é possível juntar elementos aqui e ali na documentação disponível e recompor em suas grandes linhas a gênes de 1835. Os temas deste capítulo serão o papel específico dos malês na rebelião, como e quando esta foi concebida, seu caráter e objetivos.
[Aqui poderemos tomar como conclusão de que havia interesse na construção de uma comunidade bem seguimentada ou talvez até de uma Nação que substituisse o Império do Brasil. O movimento de malês também aconteceu no Pernambuco, o que foi citado anteriormente na mesma obra.]
Quando os malês se reuniam na rua ou em casa para vivenciar os preceitos de sua religião ou simplesmente para repartir outras dimensões da vida, a ocasião era também de imaginar um mundo melhor. Para alcançá-lo, não descartavam o uso da força. Segundo a preta Agostinha, eles "quando se juntavão falavão em fazer guerra aos Brancos"(1). Mas é preciso entender o guerreiro malê. Sua "guerra" por muito tempo não passou de uma rebeldia retórica, uma metáfora do conflito social efetivo - comentários rancorosos que exprimiam o desejo de reparação, mais do que a discussão da revolta como objetivo concreto. É claro que após duas décadas de rebeliões escravas a experiência insurrecional faria parte de qualquer especulação, por menos objetiva que fosse. Mas a idéia de uma rebelião específica, planejada, datada, certamente foi surgindo aos poucos.
[Anteriormente, o autor já tinha destacado na mesma obra que muitas vezes os relatos oficiais foram arrancados à força, ou seja, apesar da aparente validade histórica os escravos talvez nunca tenham falado tais frases. Talvez a repetitiva afirmação de "guerra aos brancos", tenha servido para a criação de um justificativa para a repressão que viria a seguir. Além disso, é bom lembrar que o português da época era diferente e, portanto, juntavão = juntavam. ]
A rebelião aconteceu num momento de expansão do islã entre os africanos que viviam na Bahia. Não sabemos exatamente se ela foi uma conseqüencia natural, um episódio culminante dessa expansão, ou se a busca de novos adeptos à religião já seria parte de um plano de ruptura com a ordem. Acreditamos que tenha havido um pouco das duas coisas. O sucesso dos malês em constituir uma comunidade religiosa relativamente coesa e atraente deve ter inspirado idéias de ultrapassagem dos limites estabelecidos pelo poder dominante, idéias de revolta que, uma vez amadurecidas, levaram os líderes a pensar também no aumento das bases muçulmanas como uma estratégia específica de tomada do poder.
Decerto, é inútil delimitar em casos como este a fronteira entre a religião e a rebelião. Esta última começa quando aquela enuncia a predileção por um povo oprtimido. O próprio fato de africanos escravos professarem o islã configurava uma cisão, um afastamento radical da máquina ideológica escravista e, portanto, uma rebeldia. Lembramos que na Constituição de 1824 o catolicismo constava como a religião do Estado, único com direito a celebrar cerimônias públicas e estabelecer templos às claras. Aos estrangeiros europeus concida-se direito à liberdade religiosa, desde que exercida privadamente. As religiões escravas eram ilegais, caso policial e não constitucional. Neste sentido os malês viviam na ilegalidade.
[Os Malês, portanto, não eram simplesmente "diferentes" dos "brasileiros" da época étnica e monetariamente: a cultura era absolutamente adversa. Esse foi o motivo da criação do Brasil Malê: queríamos algo absolutamente novo e ao mesmo tempo sem a perda da nossa idêntidade cultural. A cultura dos malês existe até hoje, mesmo não sendo a oficial...]
O abismo entre o islã e a sociedade baiana era ainda mais profundo por se tratar de uma religião exclusivamente africana e que unia escravos e libertos. Por não ser uma religião de origem étnica, o islã tinha também o potencial de unir vários grupos étnicos, retirando dos escravistas a vantagem política da divisão entre os africanos. Não representava apenas a ideologia de uma classe - no caso a de escravos - mas, muito mais, a de povos, civilizações não - européias; revelava-se para o senhor brasileiro como o retrato do outro de corpo inteiro, não dividido. Na Bahia o islã - como outras expressões religiosas africanas - só por existir subvertia, no mínimo, a ordem simbólica dominante.
[O mesmo autor escreve mais adiante, página 196: "A importância da identidade étnica não deve ser entendida como uma explicação da revolta alternativa à religião. A relação etnia - religião era complexa. Entedemos que embora o islã não seja uma religião étnica - pois se pretende universalizante - ela pode ter-se tornado exatamente isso no cenário história de 1835. Na Bahia o islã estava identificado com certos grupos étnicos, principalmente os nagôs e haussás. No entanto, mais importante ainda era que tornar-se malê não parecia diminuir a consciência étnica do converso, mesmo porque, como vimos em capítulo anterior, o islã se mesclou com as religiões propriamente étnicas da África. Muitos dos africanos que entraram na rebelião não sabiam exatamente se estavam ali como nagôs ou como malês, sem contar os que realmente só eram nagôs e se entusiasmaram com a luta organizada pelos patrícios malês."]
Mas é claro que a rebelião de 1835 demonstra que os malês foram além da subversão simbólica. A partir de um determinado momentos eles começaram a estrutura politicamente a proposta rebelde. É provável que 1835 não tenha sido a lição inaugural de rebelião para muitos deles. Embora nào concordemos com autores que apontam o dedo muçulmano em vários rebeliões anteriores, especialmente as tidas como haussás, do tempo dos condes da Ponte e dos Arcos, acreditamos no entanto que havia malês nelas envolvidos. Um dos mestres processados em 1835, Elesbão do Carmo, o Dandará, aparece nos autos como participante das insurreições do período do conde dos Arcos. Conta uma testemunha que ele "por ser esperto sempre escapou de ser preso" (2)/ Este não deve ter sido o único malê esperto. Mas, insistimos, não há provas de que tenham sido autores exclusivos ou sequer vanguarda privilegiada desses movimentos.
Em 1835 foi diferente.
Os cinco primeiros anos da década de 1830 foram de grande confusão na província: distúrbios de rua, motins antilusos, saques, revoltas federalistas, quarteladas e revoltas escravas, que aconteciam em meio à crise econômica. Entrementes, crescia a "sociedade malê". A corrida para o islã não significou necesariamente a corrida para a revolução. Tratava-se, num primeiro momento, da busco de canais de solidariedade e prestígio social no interior da própria comunidade de africanos. Este último aspecto não pode ser subestimado. Aprentemente era honroso o título de malê. Significava ser respeitado pelo uso da cultura escrita ou simplesmente por pertencer a um grupo de reconhecida reputação africanista. Vimos no capítulo anterior que o orgulho muçulmano era inclusive usado como um mecanismo de poder nas relações cotidianas, comportamente que criava animosidade entre os malês e os outros africanos.
[Engraçado notar que os malês tinham conhecimento da arte da escrita, diferentemente da maioria dos brancos e negros da época. Eram escravos, porém, muitas vezes, com mais conhecimentos que seus próprios senhores!]
Havia, então, na trajetória de se tornar e ser malê uma perspectiva vertical e outra horizontal. Uma que contestava o poder senhorial, outra que disputava poder entre os africanos. Ambas obviamente se cruzaram, pos para quem havia feito, entre tantas outras, a opção pelo islã, ser malê passava a ser a melhor forma de vencer, aqui ou no outro mundo, o senhor branco. E evidentemente nem todos os africanos concordavam.
Esse momento da história africana na Bahia parece ter sido riquíssimo em experiência humana, um período repleto de discussões, inovações, mudanças ideológicas. Guardadas as devidas proporções, não seria exagero denominá-lo um período de eferverscência revolucionárias. A sociedade baiana respirava política, vivia na agitação, e a comunidade negra não ficou à margem desse processo.
Dentre as várias alternativas políticas e de vida em ebulição entre os africanos nesse período, o islã tomou a dianteira. Foi o seu momento. Não porque tivesse desde sempre optado por uma revolução social, o que não é tão claro assim, mas porque propunha uma revolução nas vidas de seus seguires. Tirava deles a vontade de ser escravos, impregnava-os de dignidade, constituía novas personalidades. Só na hora certa os líderes malês orientavam seus discípulos a transformarem o compromisso individual com a religião num compromisso com a rebelião armada coletiva.
A persipicácia desses líderes foi fundamental na consolidação de uma estrutura organizacional rebelde. Enquanto o número de conversos e simpatizantes aumentava sem qualquer promessa concreta de revolta, eles avaliavam seus liderados, estudavam as condições políticas, meditavam sobre o melhor momento de rebelar. Para eles era importante um momento que associasse considerações de estratégia secular com o desdobramento da vontade de Alá. Para isso contavam com a confiança e o respeito indiscutível de discípulos dispostos a segui-los para onde fossem, sem aviso prévio. Apenas os alufás ou malam [= Mu'allim ou alim (árabe): clérigo, mestre.] detinham o segredo da hora de atacar. Talvez por isso, só às vésperas do dia marcado - num momento em que as notícias da conspiração já corriam a cidade de boca em boca - puderam as autoridades tomar conhecimento dos desígnios dos malês.
Acreditamos que a rebelião começou a ser concretamente arquitetada em fins de 1834. Quer dizer, só a partir daí começou o trabalho prático de definir táticas, estabelecer métodos, compor alianças, acelerar contatos, desgnar tarefas, marcas datas.
A vigorosa celebração do Lailat al-Miraj em novembro (ver no capítulo anterior) foi um divisor de águas. Naquela celebração se refletia o sucesso do islã e os seus limites. Quuando a festa foi interrompida e dissolvida pelo inspetor de quarteirão Antônio Marques, encerrou-se uma etapa da história muçulmana na Bahia. Esse espisódio, selado pela posterior destruição da "mesquita" da Vitória, lançou a discórida e o abatimento sobre a comunidade malê. Feriu-lhe o orgulho e revelou sua fraqueza para a cidade. Os muçulmanos precisavam agir logo, fazer algo que evitasse uma debandada e uma crise de confiança em sua causa. Além do drama do al-Miraj , dois outros indicentes devem ter entrado nos cálculospolíticos dos líderes: a prisão, também em novembro, do alufá [= Mestre Malê, corruptela do termo sudânes-ocidental alfa. Mesmo que mu'allim (árabe) ou marabout ou alim.] Pacífico Licutan por motivos alheios à revolta; e, mais ou menos na mesma época, a prisão e humilhação pública de outros importantíssimo mestre, Ahuna (sobre estes homens e as circunstâncias destes eventos falaremos no próximo capítulo). É quase certo que a decisão sobre a revolta de 25 de janeiro de 1835 foi tomada entre novembro e dezembro de 1834. Uma decisão calma, calculada, política, que soube conter a emoção da hora da crise. Que soube também, como veremos em breve, escolher uma hora coerente com o calendário islâmico.
A partir de então a liderança malê iniciou uma sinalização mais definida de seus objetivos. O raio de ação dos conspiradores deveria ultrapassar Salvador. Parecia claro para eles que uma revolta estritamente urbana não teria futuro, pois deixaria fora o grosso da população africana concentrada nos engenhos e vilas do Recôncavo. A estratégia da rebelião havia, aqui também, sido precedida pela dinâmica da expansão religiosa. Os malês haviam feito adeptos, constituído base no interior. "Por todo o Recôncavo", confessou o escravo Carlos, "estão espalhados comissários a fim de fazer extensiva a mesma sociedade [malê] ... e ouviu de alguns outros pretos em diversas ocasiões dizerem que quando for necessário o rompimento geral, os do Recôncavo viriam socorrer os dessa cidade". Se os contatos no meio rural não eram novos, foram intensificados durante as semanas que antecederam a rebelião. O papel dos malês libetos foi fundamental nessa tarefa. Manoel Calafate era um dos "comissários". A mulata Joaquina, moradora no mesmo prédio que o liberto, informou ao juiz de paz que três dias antes do levantes ele retornara de Santo Amaro, desde quando se intensificava o vaivém de africanos em sua loja. Outro comissionado para a Baía de Todos os Santos era o comerciante de fumo Dandará. Segundo o depoimento de Pompeu, escravo de um engenho em Santo Amaro, esse mestre o assistia espiritualmente quando visitava o lugar. Aliás, a cidade de Pompeu parece ter sido o núcleo principal das atividades contra a ordem no interior. De Santo Amaro vieram ele e outros para lutar nas ruas de Salvador em 1835 (3).
Durante talvez cerca de um mês os malês foram mantidos sob estado de alerta. A rebelião poderia explodir a qualquer momento. A palavra sobre a data precisa só alcançou os escalões secundários de rebeldes com poucos dias ou , para muitos, poucas horas de antecipação. Lançava-se mão deste expedinete de segurança certamente para reduzir ao máximo aáção tão comum de delatores. Foi assim que o liberto Belchior da Silva Cunha só "ouviu fallar em faz guerra aos brancos ... sábado pella manhã indo comprar cal". O escravo João foi avisado na tarde e Agostinho às 8 horas da noite desse dia. O depoimento de João, escravo do inglês Abraham, fornece excelente exemplo de comoa notícia chegou aos ouvidos da maioria dos rebeldes: "sendo porem na tarde do dia 24 de janeiro avisado por alguns parceiros dos quaes ... se não lembra de seos nomes, para naquela madrugada se reunirem todos, ao fim de matarem todos os brancos, pardos e crioulos, ele Reo a meia noite pouco mais ou menos, com seus parceiros Diogo, Jaimes e Daniel se foram reunir aos outros que já se achavão no campo do Forte de São Pedro ... "
As declarações de Pedro, escravo do médico Dundas, complementaram: "As 7 e meia do dia 24 de janeiro sahira da casa de seo senhor e se dirigira para a Estrada da Graça. Em caminho falou com Jaimes e Diogo, escravos do inglês José Mellors os quaes lhe convidarão para estar pronto para o folguedo de matar branco, e seguindo athé a Estrada da Graça a caza do inglês Frederico Robelliard ahi falara com os escravos deste, Carlos e Thomaz, para estarem promptos a hora do folguedo. E dali se encaminhou paraos Barris e em caminho já encontrará com PEdro e Miguel, escravos do ingles José Mellors e muitos outros que se reunião e chegando aos Barris em casa do ingles Mellors tomara a Carlos seu parceiro e vierão a se reunir as Merces onde no meio do fogo foi ferido." (4) A maioria desses africanos, escravos dos ingleses, eram muçulmanos possivelmente de longa data e, no entanto, só foram "convidados" para o levante em cima da hora.
Poder-se-ia objetar que esses depoimentos representariam o esforços dos interrogados para esconder envolvimento maior na rebelião. Talvez, mas só em alguns casos. É difícil, por exemplo, imaginar que Belchior da Silva Cunha só teria sabido sobre a rebelião na véspera, ele que morava num dos centros muçulmanos mais ativos com outro dedicado malê, o alfaiate Gaspar. Mas parece-nos improvável que depoimentos tão detalhados e auto-acusatórios como os de João e Pedro sejam invenção. Havia os malês espertos, que negaram tudo ou inventaram histórias. Mas havia também aqueles que, por razões que ignoramos, contaram inocentemente sua culpa.
Acreditamos então que apenas um grupo pequeno dos rebeldes detinha informações completas. Eram os mestre e seus colaboradoresmais próximos. Parece indiscutível que o aviso final para o levante partiu deles. É o que nos informa o depoimento da escrava Marcelina, segundo ouvira da liberta Agostinha. Contou-lhe esta última que seu "amazio" Belchior da Silva Cunha "tinha sido convidado pelo seu mestre, o dito escravo Luís [Sanim], assim como todos os mais mestre convidarão os outros discípulos para fazerem guerra aos Brancos") notem que o depoimento de Belchior destoa deste). A liderança dos malams é comprovada por um singular ritual ocorrido na casa de Manoel Calafate. Segundo relatório do juiz de paz Caetano Vicente de Almeida Galião, no quarto do liberto "foi achada huma vara com um lenço branco perfilado de roxo em forma de bandeira com seis saquinhos de couro e pano em (frente do) que declarou, o Preto Ignacio, se dava o juramento de não morrer na cama e sim Pay Manoel Calafate." (5) É possível que esse ritual de fidelidade tenha se repetido às vésperas da revolta diante de cada mestre, pelo menos por seus discípulos mais diletos e engajados.
Se cada mestre orientou seus alunos na revolta, a última palavra pode ter sido pronunciada por um certo Mala Mubakar. Segundo a tradução de 1835 de um manifesto escrito em árabe, cujo original infelizmene não sobreviveu, esse homem teria conclamado todos os malês para a luta, garantindo-lhe invulnerabilidade física diante do inimigo. Mubakar não é mencionado com este nome por qualquer dos réus; também nunca foi preso, ou, se foi, conseguiu manter sua identidade secreta. Poderíamos talvez supô-lo personagem da imaginação policial da época - conveniente exagero da boa organização malê para justificar repressão exagerada -, caso sua existência não fosse também estabelecida 60 anos depois. Foi então que Nina Rodrigues ouviu de um velho alufá que Mubakar chamava-se Tomé na terra de branco e em 1835 ocupava o cargo de almami (iman em árabe [= líder político - religioso ]) da Bahia, ou seja, era o líder espiritual máximo da comunidade malê. (6) Contudo, não deixa de intrigar o fato de que estrela rebelde de tamanha grandeza só apareça numa assinatura a um manifesto que desapareceu. É possível que a distância guardada entre esse líder e os malês comuns representasse um aspecto do islã baiano à época e da própria rebelião. As forças que se ocultam sempre parecem mais poderosas. no próximo capítulo sugerimos quem pode ter sido este personagem aparentemente misterioso, mas na verdade bastante conhecido dos africanos.
A data escolhida para o início da rebelião foi, como vimos em outro capítulo, o domingo da festa de Nossa Senhora da Guia. A escolha tinha óbvias razões estratégicas, prova de que os homens que a fizeram eram ladinos conhecedores dos costumes dos moradores de Salvador. Com efeito, a festa levaria para a distante localidade do Bonfim um grande número depessoas, especialmente homens livres. Boa parte do corpo policial também convergiri para lá, com o objetivo de controlar os excessos do povo. Dadas a distância e precariedade dos transportes e vias de acesso, ia-se do Bonfim para ficar pelo menos todo o fim de semana na festa. Vazia de homens livres e policiais a cidade se faria fácil presa. Esse o primeiro elemento dos cálculos dos rebeldes.
Uma outra razão para a escolha daquela data tinha ver com a maior facilidade para a mobilização dos escravos urbanos. Para estes, o domingo de festa significava poder escapar dos olhos vigilantes dos senhores em casa e dos policiais nas ruas. Podiam deixar mais livremente seus quartos para encontrar os parceiros de conspiração ou agitar a participação de outros escravos alehioss a ela. Há depoimentos indicando que os conspiradores pretendiam insuflar os escravos africanos que na manhã do dia 25 saíssem às ruas para pegar água nas fontes públicas. Do ponto de vista prático, o dia parecia ideal para o aparecimento de uma insurreição urbana generalizada (ver capítulo "A batalha pela Bahia").
Mas havia outras razões, menos mundanas, para a eleição daquela data. A rebelião foi planejada para acontecer num momento especialíssimo do calendário religioso muçulmano, na verdade o mais importante do ano: o Ramadã. Com excessão de Nina Rodrigues - mas que apenas se refere à "medida propiciatória do jejum" - nenhum autor deu o devido peso a esse elemento de timing. No entanto, os documentos trazem pistas definitivas a esse respeito. O depoimento do carcereiro da prisão municipal, Antônio Pereira de Almeida, informa que dias antes da revolta houve na cadeia um encontro entre o mestre Licutan e visitantes africanos, ocasião em que estes lhe disseram "que quando acabasse o jejum ele haviam de ir lá para ele sair forro de uma vez". Outro relato da polícia noticia o desaparecimento de farinha de amendoim e rapadura das feiras de Salvador, ambos produtos consumidos pelos malês ao cair da noite durante o Ramadã. (7)
Para confirmar essas informações fizemos a conversão do dia 25 de janeiro de 1835 da era de Cristo para o calendário muçulmano, e resultou o esperado: 25 de Ramadã A. H. 1250. Era o final do mês do jejum, uma data inclusive muito próxima da festa do Lailat al-Qadr, expressão traduzida para os idiomas ocidentais ora como Noite da Glória, ora como Noite do Poder. O Qadr é celebrado em toda a África Ocidental no 27° dia do Ramadã. Talvez os malês pretendessem celebrar nesse dia a vitória já conquistada, a glória do poder. Porém, é mais provável que desejassem celebrar essa gloriosa noite aproveitando para a revolta o novo campo de poder por ela produzido. Isso era possível adaptando o calendário muçulmano à Bahia e às necessidade da comunidade malê. A conversa de que Licutan seria solto no final do jejum confirma esta última hipótese. (8)
[Utilizei o site: http://www.cs.pitt.edu/~tawfig/convert/convert.cgi para fazer a conversão de datas. O resultado foi o mesmo: 25 RamaDHaan 1250 A.H. ]
Com efeito, o Lailat al-Qad encerra o Ramadã. Na África Ocidental acredita-se que nessa noite Alá aprisiona os djins para livremente reordenar os negócios do mundo. O Qadr constitui a sura 97 do Alcorão, que é curta e bela. Sua leitura deve ter inspirado os rebeldes da seguinte forma: "Revelamos o Alcorão na Noite da Glória. / Quisera soubessem vocês como é a Noite da Glória! / Melhor que mil meses é a Noite da Glória. / Nessa noite os anjos e o Espírito têm / licença do Senhor para descer com Seus decretos. / Essa é noite é de paz, até o romper do dia." (9) "Até o romper do dia" - teriam os malês baianos tentado seguir ao pé da letra a proposta da sura corânica? Estariam eles, quando reunidos na casa de Manoel Calafate, celebrando a Noite da Glória e esperando o romper do dia para investir contra a ordem escravista? É uma leitura plausível do movimento, inclusive da documentação que explicitamente indica a alvorada como a hora marcada para o levante.
[A tradução utilizada pelo autor não é a mais apropriada. Utilizamos a interpretação (não existe tradução do Alcorão) de Samir El Hayek (que existe em livro, mas pode ser conferida www.islam.com.br):
AL CADR (O Decreto)
1. Sabei que o revelamos (o Alcorão), na Noite do Decreto. (1)
2. E o que te fará entender o que é a Noite do Decreto?
3. A Noite do Decreto é melhor do mil (2) meses.
4. Nela descem os anjos e o Espírito (Anjo Gabriel), com a anuência do Seu Senhor, para executar todas as Suas ordens.
5. (Ela) é paz, até o romper da aurora!
(1) Os literalistas acham que se trata de alguma noite em particular do calendário. Mas não há consenso, quanto a que noite seja. A 23a, 25a da noite do Ramadan, bem como outras noites foram aventadas. É de bom alvitre ter em mente seu sentido místico, que também aparece no versículo 3 desta surata, onde se diz que a Noite do Decreto é melhor do que mil meses. Ela transcende o tempo, porquanto se trata do Poder de Deus, dissipando as Trevas da ignorância, com a sua Revelação em todas as espécies de assuntos.
(2) O numeral "mil" deve ser tomado em um sentido indefinido, como se demonstrasse um período de tempo muito extenso. Isso não se refere às nossas idéias de tempo, mas im ao Tempo eterno. Um momento luzidio, sob a Luz de Deus, é melhor do que mil meses ou anos de vida animal, sendo que tal momento transforma a noite de trevas em um períodop de glória espiritual.]
Mesmo que a revolta não teha seguido tão fiel roteiro ritual, o certo é que o Ramadã não se intrometeu nessa história acidentalmente. (digo de outra maneira, só aparentemente inversa, trata-se de um caso típico de "intrusão de tensões sociopolíticas no calendários das festas". (10)) Na verdade, qualquer momento do Ramadã seria apropriado a aventuras perigosas, pois como observa um autor, "acredita-se-se que neste periódo muitos espíritos do mal e poderes malignos são amplamente neutralizados" (11). Anular as forças do mal incorporadas por seus inimigos - os rebeldes malês acreditavam não precisar de muito mais.
Não há dúvida. Para os malês, a rebelião de 1835 fez parte do programa de comemoração do Ramadã, seria uma celebração, primeiro ato de uma nova era. Este estado de festa se expressa nos termos usados por muitos dos rebeldes para definir a rebelião, termos como "folguedo", "brincadeira", "brinquedo", "banzé". A linguagem lúdica, coerente com culturas africanas que formaram o Novo Mundo, faz supor que religião, política e festa se confundiam na visão de mundo dos malês e com certeza de outros africanos. É importante ressaltar este aspecto, sobretudo porque ele não se encaixa na perspectiva daqueles que interpretaram o islã africano na Bahia a partir do (pre)conceito de um islã sisudo e triste. Os depoimentos de réus e testemunhas falam tão freqüentemente em festas, jantares, comeres e beberes, que só nos resta reconhecer que aqui aquela religião era bastante festiva, não obstante os tabus alimentares, sexuais e outros que, como toda religião, provavelmente não eram seguidos à risca por todos. Assim, do ponto de vista malê, em 1835 se posicionaram ao lado do mal os sérios defensores e membros integrados da sociedade branco-escravista; ao lado do bem os apocalípticos militantes do islã, em plena alegria por estarem a serviço da justa transformação do mundo.
Protegidos por amuletos, abadás e a palavra de seus mestre religiosos, agindo em sintonia com uma conjuntura cósmica favorável, os malês foram à luta com enorme esperança de sucesso. "A vitória vem de Alá. A vitória está perto. Boas novas para os crentes"- prometia o texto fortemente milenarista de um amuleto confisca pela polícia. (12) Mas a vitória contra quem, exatamente? E que fazer da vitória?
É difícil imaginar como seria a Bahia com os malês no poder. Os depoimentos dos acusados nada dizem diretamente a esse respeito. Os documentos árabes encontrados não continham planos de governo. Nem por isso é impossível estabelecer algumas importantes características da natureza e objetivos da rebelião.
Em primeiro lugar, a revolta previa uma Bahia só de africanos. Segundo um dos documentos árabes traduzidos pelo escravo haussá Albino, "a gente havia de vir da Victória tomando a terra e matando toda a gente da terra de branco". Não só os brancos de cor deveriam morrer, mas também mulatos e crioulos nascidos no Brasil - "toda a gente da terra de branco", enfim. Outras fontes são mais explícitias. Recordamos as declarações do escravo João, algumas páginas atrás, que confirmam o objetivo dos rebeldes de "matarem todos os brancos, pardos e crioulos". Já o depoimento de Guilhermina Rosa de Sousa apresenta uma variante importante. Segundo ela, seu companheiro Domingos Fortunato ouvira no porto que os rebeldes pretendiam tomar a terra, "matando os brancos, cabras e crioulos, e tão bem aqueles negros de outra banda que quisessem unir a elles, ficando os mulatos para seus lacaios e escravos". Neste caso o campo brasileiro é engrossado pelos "cabras", que na linguagem racial da época significa alguém entre o mulato e o crioulo - isto é, um crioulo claro ou um mulato escuro. Além disso, considera-se a possibilidade de que parte dos africanos ("negros de outra banda") se aliaram aos da terra e por isso teriam o mesmo destino destes. Afinal, o aspecrto mais interessante: o plano de escravização dos mulatos (13).
[Repetindo, tais depoimentos podem ter sido forçados ou conseguidos à força, haja vista a participação de mulatos e libertos no levante.]
Caso os malês pretendessem realmente inventar uma escravidão mulata, não estariam mutilando de todo a lógica da época. Na África os prisioneiras de guerra eram parcialmente poupados para serem vendidos ou servirem aos vencedores. A escravidão existia por toda a África Ocidental, inclsuive entre os povos que mais contribuíram com escravos para a Bahia no século XIX: os iorubá-nagôs, haussás, jejes, por exemplo. É verdade que lá a instituição tinha suas peculariedades, destacando-se a maior mobilidade social permitida aos cativos. Estes podiam, em certos casos, tornar-se generais, ministros, conselheiros de reis e chefes locais. Mas, claro, como em qualquer sociedade escravocrata, a maioria dos escravos ocupava as posições sociais mais humildes. Deve-se também lembrar que o islã aceitava a escravização de heréticos e pagãos, e se estes se convertiam não ganhavam automaticamente a liberdade. Na África os muçulmanos comerciavam de tudo, inclusive escravos. Muitos dos malês baianos provavelmente não tiveram um africano tão inocente. (14).
Independente da experiência escravista na África, e reforçando-a muitas vezes, o africano muito aprendeu na Bahia sobre a arte de escravizar. Aprendeu não só através do exemplo do senhor branco, ou da provocação nele, africano, da vontade de inverter os papéis na estrutura de dominação. Além disso, não era estranha na província a figura do liberto-senhor, e havia até casos, raríssimos é verdade, de escravos-senhor. Deve0se esclarecer, no entanto, que a comunidade malê não se caracterizava pela presença de africanos senhores. Entre os réus processados só haviia um liberto que era proprietário de um escravo: Gaspar da Silva Cunha, senhor do escravo congo José.
Ora, egressos de sociedade escravistas na África, introduzidos numa outra sociedade ainda mais fortemente estruturada pela escravidão, os rebeldes possivelmente encaravam este tipo de relações sociais entre os homens como inevitável. Seu projeto de escravidão para a Bahia podia ser diferente - seria só de mulatos para começar - , mas não escaparia à regra da época. Nenhuma utopia igualitária. Isto, sem dúvida, decepciona quem espera encontrar heróis desinteressados na história das rebeliões. Mas os malês eram homens de carne e osso, limitados pelas perspectivas de seu tempo e pela própria condição humana. Afinal, qual escravo nunca desejou ser senhor?
Embora não constituísse um absurdo a existência de planos entre os rebeldes para instauras uma nova escravidão, é preciso enfatizar que as evidências a esse respeito são poucas. Não passam, efetivamente do depoimento e Guilhermina. E é possível que as pessoas que conversaram com seu marido a escravização de mulatos estivessem simplesmente emitindo opiniões pessoais, totalmente à margem das intenções coerentes no movimento. O certo é que os rebeldes pretendiam romper com a dominação branca e que viam mulatos e crioulos como cúmplices - não vítimas como eles - dessa dominação. (Discutiremos essa questão mais detalhadamente no capítulo "Raízes: razões étnicas em 1835".) Mas acreditamos que caso a história tivesse dado chance, uma vez no poder os africanos terminariam por estabelecer um modus vivendi com os afro - baianos, como aconteceu no Haiti, por exemplo. Talvez impossível fosse fazer a paz com os brancos. Estes eram indiscutivelmente o alvo principal do rancor rebelde. O movimento foi definido antes de mais nada como um "folguedo de matar branco". "Guerra aos brancos", "matar os brancos" e outras expressões do gênero foram as mais freqÜentes nos depoimentos dos africanos presos. Nem crioulos nem mulatos foram objeto de tanta atenção dos insurgentes de 1835. (15)
Se por um lado a "gente da terra de branco" era toda considerada adversária dos rebeldes, por outro a rebelião se baseava no princípio de que todo africana representava um aliado potencial. Essa interpretação se choca frotalmente com a opinião de quem viu (ou vê) nela nada mais que uma jihad , a clássica guerra santa muçulmana contra infiéis de todas as cores e origens. Entre esses autores encontram-se Etiene Brazil, Arthur Ramos e Pierre Verger. A tradição "jihadista" foi iniciada por Nina Rodrigues, que apesar de não utilizar o termo jihad, sem apresentar qualquer evidência atribuiu aos rebeldes o plano de "massacra... os africanos fetichistas" junto com os brancos e crioulos. (16)
É possível que os malês pretendessem um dia instalar um califado exclusivo na Bahia, mas não acreditamos que fossem imbecis para imaginarem que em 1835 poderiam enfrentar de uma só vez tantas frentes de luta. A iluminação religiosa não cegou a razoável inteligência política que provaram ter na organização do movimento. Este foi sem dúvida capitaneado pelos malês, mas o levante também contava com a participação não - muçulmana. Se o islã foi a linguagem e ideologia predominantes, outros elementos também contribuíram para a mobilização de gente - entre eles a solidariedade étnica, que discutiremos no capítulo "Raízes e razões étnicas em 1835".
Ao nosso ver, a rebelião foi planejada como uma aliança entre malês e demais africanos; e efetivamente não foram apenas os malês que saíram às ruas naquela madrugada de 25 de janeiro. O lvantou interessou a africanos de diversas origens e persuasões religioas, e seus organizadores contavam exatamente com a constituição desse front africano. E era natural que assim fosse, senão por tolerância ideológica, pelo simples fato de que os malês sabiam que representavam uma minoria entre os africanos, e minoria ainda menor no conjunto dos habitantes da Bahia. Sozinhos não tomariam nem uma freguesia, quanto mais a província. Pretendiam levantar os escravos africanos na manhã daquele domingo e para isso não sairiam exigindo identidade de malê aos que quisessem entra no "folguedo". Se tinham uma jihad na cabeça, era uma jihad convenientemente desviante do modelo clássico de guerra santa, já que incluía gente de fora da comunidade islâmica.
O tom religioso na preparação da rebelião não espantou os não - muçulmanos. Para quem acreditava, de fora, na magia forte do islã, ali estava uma boa chance de prová-la. Outros, talvez maioria, entraram na luta sem procurar saber de seu singificado religioso. Estavam ali para o que desse e viesse. Havia uma revolta de africanos eles, como africanos, estavam nela. Quem não participou, não o fez por discordar das diretrizes muçulmanas - embora deva ter havido pessoas neste caso -, mas sobretudo porque não sabia ou não acrditava na revolta como método de resolver seus problemas, ou ainda por medo, ou até por inimizade pessoal com alguém envolvido. Nos depoimentos encontramos expressões de cada um desses casos.
Não negamos a hegemonia dos malês no bloco rebelde, negamos sua solidão. O cenário que imaginamos para os eventos de 1835 é o seguinte: uma vanguarda malê responsável pela idealização e início da revolta; um segundo grupo de parceiros de trabalho, amigos e simpatizants dos malês mobilizados às pressas por estes algumas horas antes ou no calor da própria luta; finalmente, o pessoal que se lançou na insurreição por moto próprio, gente que acordou com o barulho na rua, saiu, olhou, conferiu e decidiu participar. Neste cenário os malês lutam ao lado de kafiris, de cultuadores de voduns e orixás. Principalmente estes últimos. Se quisermos definir resumidamente o movimento de 1835, podemos dizer que a conspiração foi malê e o levante foi africano.
Adiante discutiremos com detalhes quantitativos a predominância nagô no movimento. No entanto, é preciso desde já chamar a atenção para o fato de que, ao contrário da perspectiva dos "jihadistas", há razões para imaginar uma convergência dos nagôs em torno do projeto de seu setor muçulmano. Inicialmente, recordamos que eles estavam muito bem representados entre os malês, a ponto de a rebelião ter sido entendida por diversos observadores da época como produto nagô. Como discutimos no capítulo anterior, havia também um comércio cultural enorme entre o islã e as religiões africanas tradicionais, entre elas a dos orixás. O uso generalizado dos amuletos malês refletia isso; outro exemplo seria o sincretismo dos espíritos tribais (anjonu) com os djins muçulmanos. Mas havia mais.
os filhos de orixá reservavam um lugar especial para os filhos de Alá em sua mitologia. Consideravam-nos pessoas pertencentes ao lado dos ori'xas brancos (funfus), especialmente o grande Orisalá (Oxalá na Bahia). A cor branca do abadá e o uso pelos muçulmanos da água em cerimônias públicas e rituais privados - por exemplo, as abluções diárias do corpo e a lavagem do cadáver antes do sepultamento - representam signos de parentesco simbólico com Oxalá. Este também tem no branco sua cor símbolo, e um de seus elemtnos vitais é a água. Um grane pano branco, coincidentemente denominado Alá, é o mais importante emblema de Oxalá; e sua festa maior é conhecida como Águas de Oxalá.
[Oxalá também pode ter vindo de InShá Allàh, ou seja, se Deus quiser. A Igreja Católica geralmente coloca "oxalá" como "Deus queira" ou "Se Deus quiser". É um "aportugueizamento".]
Através dessas conexões simbólicas os sacerdotes de Ifá, o orixá divinador, passaram a identificar os muçulmanos na África como filhos de Oxalá. Encaminhavam aos alufás pessoas que os procuravam mas cujos problemas lhes pareciam mais adequados à sabedoria islâmica. Tornou-se comum que os babalaôs, como são chamados esses sacerdotes iorubás, orientassem pessoas a se iniciarem no islã porque assim aconselhavam os jogos divinatórios de Ifá. Segundo Stasik, "Imale veio a ser incorporado no décido segundo dos dezesseis odu ou "capítulos" da sabedoria ifá, no otua meji, que era a esfera tradicional de orisatalabi, o orisa assoaciado com brancura e banhos rituais, os dois elementos mais próprios dos muçulmanos. "(17) Na tradição a que essa autora se refere, o otua meji recomendaria a conversão ou iniciação ao islã.
Segundo a obra clássica de Maupoil sobre a geomancia africano-ocidental, o signo tula-meji diz respeito aos muçulmanos. "Os 'marabouts' e todos aqueles que vestem camisas compridas vêm ao mundo sob este signo. Ele simboliza tudo que é malê, muçulmano..." (18) Os malês estõa também presentes no sistema divitório dos 16 búzios, mais simples que o Ifá e talvez por isso mais divulgado. Um dos versos do jogo com dez búzios explica nada menos que a origem do Ramadã. Conta que Nanã, a velha mãe d'água, mãe de todos os malês segundo uma tradição iorubá, caíra doente. O jogo de búzios indicava que seus filhos deveriam fazer sacrifícios aos orixás. Mas ao invés de dar de comer a eles, os filhos de Nanã alimentaram a ela todos os dias com mingau de milho. Ao final de trinta dias "Nanã estava acabada, e prestes a morrer chamou seus filhos. / Disse ela: "De hoje em dia / "Quando cada ano se completar / "Vocês devem passar fome por trinta dias. / "Não devem comer durante o dia, nem beber água." / Assim começou o jejum, os Imale não devem quebrar o jejum. Esta a origem do jejum" (19) Por aí se vê que uma prática central da religião islâmica ganhou explicação própria no terreno da religião dos orixás.
A incorporação de elemtnos do islã pela religião iorubá representa mais um exemplo da reconhecida plasticidade e tolerância desta. Mas a reserva de um lugar fraterno para os muçulmanos no universos dos orixas não significou apenas uma generosidade desinteressada. A questão de poder esteve em jogo. Stasik muito apropriadamente sugere que o babalaô na verdade incorporou poder ao incorporar o islã a seu sistema divinatório, pois lançou uma proposta de aliança com uma religião bem - sucedida, que se tornava cada vez mais popular entre os iorubás. O divinador passou a ter voz de autoridade em dois sistemas religiosos diversos. Tornou-se um auxliar de grane valia na divulgaçãodo islã, um aliado mesmo, ao mesmo tempo que fortalecia a religião dos orixás. Eis uma brilhante lição de política! Os muçulmanos, por sua vez, retribuíram: "tentavam acomodar sua visão cosmológica à predominante crença iorubá e assim evitar o confronto com o povo de orixá."(20)
A travessia do Atlântico, supomos, não apagou de todo essa antiga aliança. Na Bahia, novas mudanças aguardavam a relação entre as duas religiões, embora tenha se tornado difícil conhecê-las, pelo completo desaparecimento do islã negro. Roger Bastide registrou a presença tópica de elemtnos malês nos candomblés brasileiros. Termos como malê, alá, alufá, etc. aparecem aqui e ali incorporador a cânticos religiosos e representações de entidades espirituais. Por outro lado, o islã baiano teria se transformado para incorporar elementos importantes do panteão nagô. Foi assim que Olorum, o deus supremo nagô, teria se associado a Alá para tornar-se Olorumuluá, a suprema entidade malê. (21)
A identificação dos malês da Bahia como filhos de Oxalá é mais difícil de se estabelecer. Há, no entanto, coincidência interessantes. Por exemplo, o dia da semana dedicado ao orixá é a sexta - feira, mesmo dia que os muçulmanos dedicam inteiramente à prece e meditação. (Na Bahia tornou-se um costume muito difundido o uso de roupa branca na sexta - feira.) Desconhecemos se na tradição iorubá africana os imales mantinham alguma relação especial com Ojo-Obatalá, o quinto e último dia da semana iorubá, dedicado a Oxalá.
Uma associação malê-Oxalá mais espetacular pode estar ligada à mais importante festa popular baiana depois do carnaval, e à conhecida relação entre Oxalá e Senhor do Bonfim.
em 1835 o Senhor do Bonfim dividia com outros santos católicos as honras da população no ciclo de festas da Colina do Bonfim. Seu dia principal era o primeiro domingo depois de Reis, e nos dois domingos seguintes, festejava-se também em grande estilo e com participação do povo, Nossa Senhora da Guia e São Gonçalo, respectivamente. Com o tempo, a quinta - feira tornou-se o momento de maior mobilização popular e o Senhor do Bonfim pratiamente passou a monpolizar as atençãoes naquele ciclo de festas. Nossa Senhora da Guia e São Gonçalo passaram para um longínquo segundo plano, e Oxalá certamente contribuiu para isso.
Originalmente um ato singelo controlado pela Igreja, a lavagem aos poucos se popularizou e se transformou numa festa afro - baiano. Essa manifestação cultural, perseguida durante muito tempo por autoridade policial e eclesiásticas, expressa uma vitória da mitologia popular e negra sobre aquela produzida e promovida pela Igreja. Seria interessante saber quando e como isso aconteceu. Sem nenhuma pretenção de dar uma solução a essa charada cultural, chamamos atenção para o fato de que a festa acontece em data muito próxima daquela em que ocorreu a rebelião de 1835. Talvez os desaparecidos malês baianos sejam pelos menos em parte beneficiários de um dos mais importantes casos de sincretimos nagô - católico na Bahia, aquele entre Oxalá e o Senhor do Bonfim. É possível que, com o esvaziamento e posterior extinção do islã negro, seus signos e a tradição de seus fiéis buscassem outras formas expressão, utilizando antigas formas do sincretimos nag6o - malê, no caso Oxalá - Alá. Assim, retirados da memória coletiva baiana, os malês teriam permanecido em seu inconsciente coletivo, numa presença celebrada e vitoriosa. Com suas águas e roupas brancas, a festa do Bonfim seria também, secretamente, uma celebração muçulmana. (22).
As estruturas simbólicas são também estruturas sociais. Elas tecem e expressam relações sociais. É, por isso, legítimo lançar mão delas como realidade sintomáticas das possiblidades profundas de fenômenos históricos. Em nosso caso, não temos dados conclusivos a respeito da aliança política entre malês e não - malês. Temos, porém, indicações de que não só malês fizeram a rebelião de 1835, e essa experiencia de união tinha, para além do momento da revolta, raízes histórico - culturais que a tornaram possível. Diante disso, a idéia de que a rebelião de 1835 foi uma "guerra santa" contra todos os não - muçulmanos não se sustenta. A rebelião certamente teve uma dimensão religiosa, e para muitos foi até uma guerra santa, mas natureza diversa da clássica jihad.
Retirado do livro "Rebelião Escrava no Brasil - a história do levante dos mallês (1835)", do Dr. João José Reis
Notas do próprio autor:
(1) "Devassa do Levante", p. 34
(2) Traslado dos Autor da Conceição da Praia, fl. 67
(3) A Justiça de José, Nagô-jabu, Escravo de José Maria da Silva, AEBa., Insurreições, maço 2846, fl. 6V; "Peças Processuais do Levante", p. 8
(4) "Devassa do Levante", p. 73; A Justiça de Nécio, Nagô, Escravo de Mellors Russel, fls. 18 e 28v.
(5) "Devassa do Levante", p. 130; "Peças Processuais do Levante", p. 13
(6) "Devassa do Levante", p. 130; Nina Rodrigues, Os Africanos Brasil;
(7) Ibidem, p. 86; "Devassa do Levante", pp. 89-90; A Justiça de Urbano, Bornu, Escravo de Jacinta Joaquina da Silva e Sá, AEBa., Insurreições, maço 2850, fl. 5.
(8) Aqui novamente usamos o livro de Freeman - Greenville, The Muslim and Christian Calendars, para a conversão das datas. Trimingham, Islam in West Africa, p. 78, traduz Qadr como "poder", e N. J. Dawood, tradutor da edição da Penguim, traduz como "glória": The Koran, p. 27. Em sua tradução brasileira do Alcorão, Mansur Challita usa a grafia Kadr, que traduz como "destino", "fatalidade": O Alcorão (Rio de Janeiro, s. d.), p. 358, nota 18. "Glória" e "poder" são obviamente mais próximas um do outro do que de "destino", razão por que optamos pelas traduções inglesas, usando a regra elementar de que a maioria está com a razão. E entre "glória" e "poder" fizemos a opção poética pela primeira palavra.
(9) Com a ajuda de Paulo Cesar Souza, traduzimos esses veros diretamente da edição da Penguim, The Koran, p. 27.
(10) Inves - Maria Bercé, Fête et revolter, Paris, 1976, p. 50.
(11) I. M. Lewis, "Introduction", in Lewis (org.) Islam in Tropical African, p. 70. Ver também Trimingham, Islam in West African, p. 78.
(12) Monteil, "Analyse de 25 Documents Arabes", p. 94.
(13) "Devassa do Levante", pp. 62 e 130.
(14) A bibliografia sobre escravidão na África é vasta. Alguns títulos mais importantes: Paul E. Lovejoy, Transformations in Slavery, Cambridge, 1983; Claudre Meillassoux (org.), L'Esclavage en Afrique Pre- coloniale, Paris, 1975; Suzanne Miers e Igor Kopytoff (orgs.) Slavery in Africa, Madison, 1977; Fisher e Fisher, Slavery and Muslim Society in Africa.
(15) Ver, por exemplo, a Justiça de Nécio, Nagô, Escravo de Mellors Russel, fl. 28v; A Justiça de José, Nagô-jabu, Escravo de José Maria da Silva, fl. 3v; "Devassa do Levante", pp. 36, 70 e 73; "Peças Processuais do Levante", pp. 27 e 30.
(16) Nina Rodrigues, Os Africanos no Brasil, pp. 66 e 67. Ver também Brazil, "Os Malês", p. 91; Arthur Ramos, O Negro na Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1971, pp. 52-53; Verger, Flux et Reflux, pp. 326-327.
(17) Stasik, "A Decisive Acquisition", p. 106.
(18) Bernard Maupoil, La Géomancia à l'Ancienesse Côte des Esclaves, Paris, 1981, p. 537.
(19) Apud William Bascom, Sixteen Cowries, Bloomington e Londres, 1980, p. 207.
(20) Stasik, "A Decisive Acquisition", p. 97.
(21) Bastide, As Religiões Africanas, vol. 1, cap. 7. esp. pp. 214-216.
(22) Sobre a devoção do Bonfim, e uma visão hostil da lavagem, ver Carlos Alberto de Carvalho, Tradições e Milagres do Bonfim, Salvador, 1915. Manoel Querino, A Bahia de Outrora, Salvador, 1922, pp. 133-146, é mais simpático à lavagem e crítica sua proibição no final do século XIX.