A Preservação Do Alcorão Sagrado
Não poderia haver nada em comum entre o verdadeiro e o falso e não há no mundo duas coisas mais opostas uma à outra que estas. Nas coisas materiais e vulgares da vida quotidiana, os malefícios da falsidade são óbvios e reconhecidos por todos.
É claro que em assuntos de salvação eterna, de crenças, e dos ensinamentos originais de uma religião, o malefício que a falsidade provoca transcendem todos os outros males.
Um homem honesto e razoável não teria nenhuma dificuldade em deduzir se determinado ensinamento é justo e aceitável, ou não. Em matéria de dogmas, o que freqüentemente ocorre é que, primeiro julgamos a pessoa do mestre antes dos preceitos que transmite. Se o achamos confiável, tanto mais facilmente nos deixamos persuadir em reconhecer nossas próprias deficiências em entender uma parte ao menos dos ensinamentos dele em lugar de rejeitarmos por completo as suas palavras. Por essa razão, a verificação da autenticidade das palavras e dos ensinamentos, especialmente se o seu autor houver morrido, torna-se imperativa.
Todas as religiões mais importantes do mundo se baseiam em certos livros sagrados, os quais são na maioria das vezes atribuídos a revelações Divinas. Seria patético se, por alguma infelicidade, ocorresse de perdermos o texto original da revelação; a reposição jamais seria totalmente igual ao que foi perdido. Brâmanes, Budistas, Judeus, Persas e Cristãos podem comparar os métodos empregados para preservar os ensinamentos básicos de suas respectivas religiões com os dos muçulmanos.
Quem escreveu os livros deles? Quem os transmitiu de geração a geração? Essa transmissão tem sido dos textos originais ou somente de versões ou traduções destes? Não tem as cópias desses textos sido afetadas pelas as guerras fratricidas? Não existem contradições ou lacunas internas às quais se encontram referências alhures? Estas são apenas algumas das perguntas que podem ser propostas e que exigem respostas satisfatórias.
Meios de Preservação
A altura do tempo em que surgiram aquilo a que chamamos de grandes religiões, os homens dependiam não apenas de suas memórias, mas haviam inventado a arte de escrever, para preservar os seus pensamentos, pois a escrita durava mais do que a recordação individual dos seres humanos visto estes terem um ciclo limitado de vida.
Ainda assim, nenhum desses dois meios é infalível se levado em conta separadamente. É uma questão de vivência diária de que aquilo que se escreve e em seguida se revisa, ao fazê-lo, descobre-se erros inadvertidos, omissões de letras ou até de palavras, repetição de opinião do próprio autor, que também corrige seu estilo, seus pensamentos, seus argumentos, e às vezes, reescreve o documento inteiro. O mesmo é verdade da faculdade de memória.
Aqueles que tem a obrigação ou o hábito de decorar algum texto para recitá-lo posteriormente, especialmente quando esse texto contém passagens longas, sabem que não raro lhes falha a memória até durante a recitação; e eles saltam passagens, misturam uma com outra, ou não recordam de modo algum a seqüência; às vezes, o texto certo permanece no subconsciente e é relembrado em algum momento posterior ou ao se refrescar a memória pela indicação feita por alguém ou por consulta ao texto de um documento escrito.
O Profeta do Islam, Muhammad, de memória abençoada, empregou ambos os métodos simultaneamente, usando cada um para ajudar o outro e assim fortalecer a integridade do texto e reduzir ao mínimo as possibilidades de erro.
Os Ensinamentos Islâmicos
Os ensinamentos do Islam se baseiam principalmente nas coisas que o Profeta Muhammad, dizia ou fazia. Ele próprio ditava certas trechos aos seus escribas, ao que chamamos de Alcorão; enquanto que outros eram compilados por seus companheiros, na maioria das vezes por iniciativa própria, e a estes textos chamamos de Hadiss - Tradições do Profeta.
A História do Alcorão
"Alcorão" significa literalmente, leitura, ou recitação ao ditar estes textos aos seus discípulos, o Profeta afirmava que eram eles a revelação Divina que lhe havia sido feita. Ele não ditou tudo de uma só vez; as revelações sobrevieram-lhe em fragmentos, de tempos em tempos. Tão logo ele recebia uma, imediatamente comunicava aos discípulos e não só pedia que a decorassem <<de maneira a poder recitá-la durante o culto>>, como também de escrevê-la e produzir cópias. Em cada uma de tais ocasiões ele indicava o lugar preciso da nova revelação no texto; sua compilação não era entretanto, cronológica. Não se pode admirar suficientemente a preocupação e cuidado mantido com a exatidão, principalmente ao se levar em consideração o padrão cultural dos árabes daqueles tempos.
É razoável crer que as primeiras revelações recebidas pelo Profeta não foram registradas por escrito imediatamente, pela simples razão de que até então não tinha ele nem discípulos nem seguidores. Estas partes iniciais não foram nem numerosas nem muito longas. Não houve risco de o Profeta esquecer-se delas, visto que as recitava com freqüência nas suas orações e nas palestras e pregações.
Alguns fatos da história nos proporcionam uma idéia do que aconteceu. Considera-se que Umar foi a quadragésima pessoa a converter-se ao Islam. Isto se refere ao ano 5 da Missão (8 anos antes da Hégira), já nessa época existiam certos capítulos do Alcorão, e, como relata Ibn Hicham, foi devido à impressão profunda causada pela leitura de algum desses documentos, que Umar converteu-se ao Islam. Não sabemos com precisão quando foi que se estabeleceu o costume de registrar o Alcorão, mas há poucas dúvidas de que nos dezoito anos finais da vida do Profeta, o número de muçulmanos crescia diariamente, assim como o número de cópias do texto sagrado.
O Profeta recebia as revelações em fragmentos, e não é mais do que natural que o texto revelado se referisse aos problemas da época. Podia acontecer de vir a falecer um dos companheiros; a revelação se dedicaria à promulgar a lei da herança; não poderia ser referente à lei de penalização do furto, por exemplo, a que fosse revelada naquela ocasião. As revelações continuaram durante toda a vida missionária de Muhammad, consistindo de, treze anos em Makkah e dez anos em Madina. Uma revelação podia as vezes consistir de um capítulo inteiro, fosse comprido ou curto, e em outras vezes de apenas alguns versículos.
A natureza das revelações exigia que o Profeta as repetisse constantemente em suas recitações e revisasse continuamente a forma que as coleções dos fragmentos tinham que assumir. É acreditadamente sabido que o Profeta recitava anualmente, no mês de Ramadan, perante o Anjo Gabriel, a parte do Alcorão até então revelada, e de que, no último ano de sua vida, Gabriel requereu-lhe que recitasse duas vezes o texto completo. Daí o Profeta deduziu que estava se aproximando a hora de sua partida desta vida.
O Profeta costumava revisar durante o mês do jejum os versículos e capítulos acumulados e colocá-los na ordem adequada. Isto era necessário em face da continuidade das novas revelações. É também sabido que o Profeta tinha o hábito de celebrar um culto adicional de louvor, no mês do jejum, todas as noites, às vezes até em congregação, durante o qual ele recitava o Alcorão desde o princípio até o final, completando esta tarefa no curso do mês. Este ritual de ''Tarawih'' continua a ser observado com grande devoção até os nossos dias.
Quando o Profeta exalou seu último suspiro, estava em marcha uma rebelião em certas partes do país. Ao subjugá-la, caíram várias pessoas que conheciam o Alcorão de cor. O Califa Abu Bakr sentiu então a urgência de codificar o Alcorão, fazendo com que a tarefa fosse terminada uns poucos meses após a morte do Profeta.
Nos últimos anos de sua vida, o Profeta costumava empregar Zaid Ibn Sábit como seu principal escriba para tomar o ditado das revelações recebidas mais recentemente. Abu Bakr encarregou esse mesmo escriba da tarefa de preparar uma cópia inteligível do texto completo, na forma de um livro. Nessa época havia em Madina diversos ''Hafizes'' (aqueles que sabiam o Alcorão de cor), e Zaid era um deles.
O Califa ordenou-lhe extrair duas cópias de cada parte do texto antes de sua inclusão no todo. Por requisição do Califa, o povo de Madina trazia para Zaid as cópias que possuíam dos vários fragmentos. Os ricos haviam mandado inscrevê-los em pergaminhos ou pedaços de couro; os pobres os inscreveram em omoplatas, ossos, pedras planas e até em cacos de cerâmica. As fontes afirmam autorizadamente que somente dois versículos tiveram uma única prova documental e que o restante se baseou nas numerosas cópias produzidas.
A cópia inteligível assim elaborada recebeu o nome de Mus'haf. Ela era guardada sob custódia do Califa Abu Bakr, e depois dele pelo seu sucessor Umar. Enquanto isso, o estudo do Alcorão era encorajado por todos os cantos do império Muçulmano. O Califa Umar sentiu a necessidade de enviar cópias do texto autêntico aos centros de províncias, para evitar desvirtuamentos; mas coube ao seu sucessor. Uthman, levar a cabo esta tarefa, um dos seus tenentes ao retornar da longínqua Armênia, relatou ter encontrado cópias divergentes do Alcorão, e de que freqüentemente havia desentendimentos entre os preceptores do Livro por causa dessas divergências.
Uthman ordenou imediatamente que a cópia preparada para Abu Bakr fosse confiada a uma comissão presidida pelo já mencionado Zaid Ibn Sábit, para que fossem preparadas sete cópias; e autorizou-lhe que atualizasse se necessário a ortografia antiga. Quando a tarefa foi terminada, o Califa mandou que fosse feita a leitura pública dessa nova "edição", perante os especialistas presentes na capital, que foram companheiros do Profeta, enviando então estas cópias aos diferentes pontos centrais do mundo Islâmico, ordenando que daí em diante todas as cópias fossem baseadas exclusivamente naquela edição autêntica. Mandou destruir as cópias que de alguma maneira divergissem do texto admitido desse modo como sendo o oficial.
É inteiramente concebível que as grandes conquistas militares dos primeiros muçulmanos tivessem persuadido algumas figuras hipócritas de proclamar sua conversão ao Islam externamente, por motivos materiais, e de tentar prejudicá-lo de um modo clandestino. Eles poderiam ter fabricado versões do Alcorão com inserções falsas. As lágrimas de crocodilo derramadas diante da ordem do califa Uthman para que fossem destruídas as cópias não autenticadas do Alcorão, só o podem ter sido por tais hipócritas.
É sabido que o Profeta às vezes abolia certos versículos transmitidos ao povo anteriormente, fazendo isso por força das novas revelações Divinas. Havia companheiros que tinham aprendido a primeira versão, mas desconheciam as modificações posteriores ou por virem a falecer ou por se domiciliarem fora de Madina. Esses podem ter deixado cópias para os seus descendentes, as quais, apesar de serem autênticas, eram desatualizadas.
Outrossim, alguns muçulmanos tinham o costume de pedir ao Profeta explicação de certos termos empregados no texto sagrado, anotando tais explicações nas margens de suas cópias do Alcorão, para que não as esquecessem. As cópias feitas mais tarde, com base nestes textos anotados podiam às vezes ter gerado confusão quanto ao conteúdo do texto. Apesar da ordem de Uthman para que todos esses textos inexatos fossem destruídos, no 3º e 4º século da Hégira existia material suficiente para compilar obras volumosas sobre as "Variações no Alcorão".
Esse material chegou até o nosso tempo, e um estudo mais apurado mostra que essas variações foram causadas ou pelos erros cometidos ao se decifrar a antiga escrita árabe, a qual nem possuía sinais vocálicos nem distinguia entro letras parecidas com pontos, como se faz atualmente. Além do mais, existiam diversos dialetos em diferentes regiões, e o Profeta havia autorizado que os muçulmanos dessas regiões recitassem o Alcorão em concordância com seus dialetos, e até de substituir palavras que lhes eram desconhecidas por outras que entendessem melhor. Esta foi meramente uma medida emergente de graça e clemência.
À época do Califa Uthman entretanto, a instrução pública havia evoluído bastante e se achou desejável que essas concessões não fossem mais toleradas para não afetar o texto Divino e permitir que se enraizassem leituras variantes. As cópias do Alcorão enviadas por Uthman aos centros das províncias desapareceram gradativamente nos séculos que se seguiram; tendo sobrevivido até aos nossos tempos somente uma dessas cópias, que está atualmente em Tashkent. O governo Czarista da Rússia publicou esse texto junto com uma reprodução fac-símile; e pode-se constatar que existe uma identidade total entre essa cópia e o texto em uso corrente. O mesmo é verdade do outro manuscrito existente do Alcorão, tanto completo como fragmentado, que data do primeiro século da Hégira.
O hábito de decorar o texto do Alcorão data do tempo do próprio Profeta. Os califas e chefes de estados muçulmanos sempre encorajaram este hábito. Uma feliz coincidência o confirmou. Desde o princípio, os muçulmanos estavam acostumados a ler uma obra diante do seu autor ou de um dos seus pupilos, e obter autorização para transmitir adiante tal obra após as necessárias dele, prosseguindo esta corrente até alcançar o Profeta como fonte.
O autor destas linhas estudou o Alcorão em Madina com o Shaykh Hassan Ach-Cha'ri e o certificado que obteve observa, entre outras coisas, a corrente de mestres e de como o último destes havia estudado simultaneamente com Uthman, Áli, Ibn Mass'ud, Ubai Ibn Ka'b e Saad Ibn Sábit (todos estes companheiros de Profeta), e de que todos eles haviam aprendido de um texto exatamente idêntico. O número de hafizes atualmente se conta em todo o mundo em centenas de milhares, e milhões de cópias do texto existem por toda a parte do planeta. E o que merece ser ressaltado especialmente é de que não existe absolutamente nenhuma diferença entre os textos usados.
O original do Alcorão foi escrito em árabe o mesmo texto continua em uso. Traduções tem sido feitas para todos os idiomas mais importantes do mundo, umas mais, outras menos, úteis para aqueles que desconhecem o árabe. Deve ser lembrado entretanto que foi no idioma árabe original que o texto foi-nos transmitido, e de que não tem havido motivos para reverter para o árabe qualquer das traduções posteriores existentes.
Um texto no idioma original, uma codificação autorizada pelo próprio Profeta, a preservação contínua pelo duplo controle simultâneo de memorizar e escrever, exercido por um incontável número de indivíduos de cada geração, e a ausência de quaisquer variações desse texto, estas são algumas das características notáveis do Alcorão, o livro Sagrado dos muçulmanos.
O Conteúdo do Alcorão
Como já foi afirmado, os muçulmanos acreditam que o Alcorão é a palavra de Deus, revelada ao Seu Mensageiro Muhammad. O Mensageiro é apenas um intermediário para a recepção e comunicação das revelações; seu papel não é nem de autor nem de editor. Se o Profeta Muhammad, mandava às vezes suprimir certos versículos, o fazia unicamente em face de uma nova revelação que lhe sobrevinha do Todo-Poderoso.
Deus é transcendente e está além de qualquer percepção física do homem; e é por intermédio de um mensageiro celestial, um Anjo, que Deus faz com que a Sua vontade e a Sua ordem sejam reveladas ao Seu mensageiro humano, pelo bem da humanidade. Deus está acima de quaisquer limitações da linguagem.
Podemos, para explicar, usar a metáfora de que os profetas são lâmpadas, e que a revelação é a corrente elétrica; em contato com a corrente, a lâmpada se acende de acordo com a sua voltagem e cor. O idioma nativo do profeta é a cor da lâmpada. A energia da lâmpada, a corrente e outras coisas são determinadas pelo Próprio Deus; o fator humano é mero instrumento da transmissão, um simples condutor.
O Alcorão está endereçado a toda a humanidade, sem distinção de raça, região ou época. Além do mais, ele busca guiar o homem em todos os caminhos da vida: espiritual, temporal, individual e coletivo. Ele contém as diretrizes para o comportamento do chefe de Estado assim como para o do plebeu, dos ricos tanto quanto dos pobres, na paz como na guerra, para a cultura espiritual bem como para o comércio e para o bem-estar material.
O Alcorão busca primeiramente desenvolver a personalidade do indivíduo: cada criatura será pessoalmente responsável perante seu Criador. Com este propósito, o Alcorão não apenas ordena, mas também procura convencer. Ele apela à razão do homem, e relata histórias, parábolas e metáforas. Ele descreve os atributos de Deus, Aquele que é Uno, Criador de tudo, Onipotente, Poderoso, capaz de ressuscitar-nos após a morte e de julgar nosso comportamento mundano, Justo, Misericordioso.
Ele contém também as maneiras de se louvar a Deus, mostrando-nos quais são as melhores orações, quais são os deveres do homem em relação a Deus, aos seus semelhantes e a si mesmo; o conceito principal que o Alcorão envolve é o de que não pertencemos a nós mesmos e sim a Deus. O Alcorão fala sobre as melhores regras relacionadas com a vida social, comercial, matrimonial, de herança, lei penal, lei internacional e daí por diante. Porém, o Alcorão não é um livro no sentido comum da palavra; ele é uma coletânea das Palavras de Deus, reveladas de tempos em tempos, ao longo de vinte e três anos, ao Seu Mensageiro perante os seres humanos.
O Rei dá Suas instruções ao Seu embaixador; portanto, há coisas compreendidas e outras implícitas; há repetições e até variações na forma de expressão. Assim, Deus fala as vezes na primeira pessoa e outras, na terceira pessoa do verbo. Ele diz "Eu", assim como diz "Nós" ou "Ele", mas nunca "Eles". É uma coletânea de revelações transmitidas aos poucos, e por isso, devemos ler contínua e repetidamente para melhor assimilar o significado. Ele contém diretrizes para todos, em todos os lugares e situações e para todos os tempos.
A dicção e o estilo do Alcorão são magníficos e apropriados à sua qualidade Divina. Sua recitação comove o espírito até daqueles que só o escutam, mesmo sem compreendê-lo. De passagem, o Alcorão, em virtude de sua reivindicação de ser de origem Divina, desafiou aos homens e aos espíritos a produzirem em conjunto, mesmo que uns poucos versículos iguais ao que ele contém. O desafio permanece sem resposta até hoje.