O Alcorão e a Riba
A palavra riba (usura) aparece nos versículos 275, 276 e 278, da surata Al Bácara, 130 da surata Aal 'Imran, 161 da surata An Nissá, e 39 da surata Ar Rum. Tradicionalmente, esses versículos são estudados em sua ordem textual.
Portanto, a análise da riba começa com um tafsir (comentário) dos versículos da surata Al Bácara. A esse respeito, duas coisas merecem destaque: a) há uma discussão em bloco dos versículos 275 a 281, da surata Al Bácara; e, b) praticamente, todas as questões relativas a riba e juros são discutidas pormenorizadamente e concluídas aqui. Também foram discutidas as questões levantadas nos ahadith a respeito de riba. Com as conclusões finais resultantes, os versículos de Aal 'Imran, An Nissá e Ar Rum receberam uma atenção cada vez menor dos estudiosos.
Este documento representa uma ruptura no método acima. Ele segue uma abordagem cronológica para o estudo dos versículos sobre a riba. Ou seja, os vários versículos são estudados na ordem em que foram revelados. São as seguintes, algumas das vantagens óbvias desta abordagem. Primeiro, melhora a nossa compreensão sobre os antecedentes e circunstâncias em que esses versículos foram revelados. Segundo, pode trazer para o nosso debate os vários progressos no processo de eliminação da riba durante a existência do Profeta Muhammad (s.a.w.). Terceito, fornece um quadro mais claro das injunções da riba. Como se pode ver, todos esses pontos são essenciais para uma interpretação adequada das injunções da riba no Alcorão e na Sunnah.
O Alcorão é a Palavra de Allah, o Todo Poderoso (s.w.t.). Tem vários capítulos, parágrafos e subparágrafos, e seções . Portanto, é fundamental que cada versículo seja lido juntamente com os versículos afins, para que se possa compreender inteiramente a mensagem do Alcorão. Olhar para um versículo ou um par de versículos pode ser bom mas, por certo, não é o ideal. Este estudo, diferente de outros trabalhos sobre riba, também chama a atenção dos leitores para as passagens completas que ocorrem nos diferentes versículos.
Na tradução inglesa dos vários versículos, a pontuação é escolhida para comunicar a mensagem do Alcorão para um público não árabe, portanto, não familiarizado com a língua árabe. O objetivo da comparação com o texto original é conseguido com a inserção do número do versículo na tradução.
Este documento tem um objetivo limitado, isto é, como compreender os vários versículos de per si. Devido às limitações de espaço, questões como definição de riba, a relação entre os versículos sobre riba e os respectivos ahadith, e outras, não serão discutidas aqui. No entanto, ao final serão fornecidas algumas referências a respeito do assunto.
1. A Primeira Revelação da Riba
A primeira revelação sobre a riba foi o versículo 39, da surata Ar Rum, que é uma surata revelada em Meca. De acordo com Maulana A'ala Maududi (Tafheem-ul-Qur'an, Vol. 3, pp. 726-7), ela foi revelada cinco anos antes da Hégira do Profeta (s.a.w.). Maulana Amin Ahsan Islahi (Tadabbur-e-Qur'an, Vol.6, pp. 90-100) observa que o versículo 39 é uma parte da mensagem que começa no versículo 30. Neste versículo, o Profeta (s.a.w.) e, por dedução, todos os muçulmanos, são aconselhados a se conscientizarem do Islam como uma forma de vida. Com este propósito, a linha de ação sugerida é:
a) Desenvolvimento da percepção de Allah (Ar Rum 30:31);
b) Extrema cautela contra a deserção - atribuir parceiros a Allah (s.w.t.) (Ar Rum 30:31-32);
c) Observância do Salat (Ar Rum 30:31)
d) Gastar com os parentes próximos, os destituídos e os viajantes (Al Rum 30:38); e
e) Cautela contra a riba (Ar Rum 30:39).
Assim, o versículo 39 deve ser lido como se segue:
"E os seus investimentos baseados na riba, a fim de aumentar sua fortuna tendo por base os ativos de outras pessoas (isto é, os tomadores de empréstimos), não aumentam do ponto de vista de Allah. No entanto, estejam seguros sobre a aceitação do que vocês dão a título de Zakat pela causa de Allah; os que pagam o Zakat são aqueles cujo valor aumenta muitas vezes com Allah." (Ar Rum 30:39)
Este versículo é uma mensagem completa em si. Contém uma referência indireta à indesejabilidade da riba. Nele, a palavra riba aparece sob a forma de empréstimo e a palavra Zakat no sentido geral de sadaqat ou infaq - caridade e outros gastos pela causa de Allah (s.aw.t). Lembrando que no período de Meca os fundamentos da sociedade islâmica ainda estavam sendo lançados, este estilo de comunicação e as diretrizes implícitas serviam a este propósito muito bem.
2. A Segunda Revelação da Riba
O versículo específico é An Nissá 4:160 e os seus afins são An Nissá 161 e 162. De acordo com Maulana Amin Ahsan Islahi (Tadabbur-e-Qur'an,Vol. 2, pp.415-26), esses versículos são uma parte de An Nissá 4:153-162. As circunstâncias na época (a expulsão de Bani Qainqa' de Medina, no ano 2 H) e o texto desses versículos dão a entender que foram revelados bem no início do período de Medina. Em An Nissá 4:153-162, a Palavra de Allah é uma resposta à provocação feita por Ahl al-Kitaab (neste caso, os judeus de Medina), por meio da qual eles buscavam no Profeta (s.a.w.) a revelação de um livro diretamente dos Céus que fosse exclusivo deles. Allah, o Todo Poderoso (s.w.t.) não respondeu ao pedido deles mas observou que eles pertenciam ao mesmo grupo daqueles que O reconheceram na época do Profeta Moisés (a.s.) e que depois O desobedeceram por diversas vezes. Depois disto, Allah (s.w.t.) torna a contar os maiores crimes dos judeus, que granjearam Sua ira sobre eles. Portanto, o versículo 160 e seus afins 161 e 162, são como se segue:
"Nós (ou seja, Allah) tornamos proibidas para os judeus coisas que tinham sido permitidas anteriormente, porque: a) eles praticaram o zulm;
b) desviaram os outros do Caminho de Allah, em praticamente todos os assuntos (An Nissá 4:160);
c) praticaram a usura apesar de ser proibida a sua prática; e
d) usurparam a riqueza alheia sem uma justificativa na Shari`ah. E, Nós preparamos um doloroso castigo para esses desobedientes (An-Nissá 4:161), No entanto, Nós daremos uma grande recompensa para aqueles (dentre os judeus) que têm um espírito aberto para a verdade, sem um grão de dúvida e que acreditam no Alcorão e em todos os outros Livros Revelados, que observam o Salat, pagam o Zakat e acreditam em Allah e no Dia do Juízo Final." (An Nissá 4:162)
Esses versículos são auto-explicativos. Embora tenham sido dirigidos primordialmente aos judeus de Medina, no estilo geral do Alcorão eles também são uma advertência para os muçulmanos sobre o que agrada e desagrada a Allah (s.w.t.)
3. A Terceira Revelação da Riba
Esta revelação está na Surata Aal 'Imran, versículos 130-136. Dentre eles, o de número 130 é o principal e os restantes seis reforçam sua mensagem. De acordo com Maulana Amin Ahsan Islahi (Tadabbur-e-Qur'an, Vol.2, pp. 167-234), esses versículos foram revelados como uma parte da Surata Aal 'Imran 3:121-200, depois da batalha de Uhud, que aconteceu no ano 3 H. São eles:
"Ó fiéis, não pratiqueis a riba, multiplicando o que foi emprestado e temei Allah para que sejais bem sucedidos." (3:130); "E temei o fogo do inferno que foi preparado para aqueles que desobedecem." (3:131); "E obedecei a Allah e ao Mensageiro(s.a.w.) para que vos beneficieis da misericórdia de Allah." (3:132); E apressai-vos em conseguir o perdão de vosso Senhor e o Paraíso, cujos limites ultrapassam os céus e a terra; o (Paraíso) foi preparado para os tementes a Allah." (3:133).
"Quanto àqueles que são tementes a Allah, devemos notar: que são as pessoas que praticam a caridade pela causa de Allah, tanto na prosperidade quanto na adversidade, que controlam seu temperamento e que perdoam o próximo. Por certo que Allah aprecia essas pessoas." (3:134); "Além disso, eles são aqueles que, quando cometem algum pecado, recordam-se de Allah e procuram pelo perdão de seus pecados. Afinal de contas, quem, senão Allah, pode absolver os pecados? São aqueles que não permanecem no erro, com conhecimento." (3:135); "Os fiéis serão recompensados pelo seu Senhor com o perdão e viverão (para sempre) em jardins com rios que correm por baixo. Esta é, na verdade, uma excelente recompensa que aguarda aqueles que praticam o bem." (3:136).
Começando pelo versículo 121, todo o texto da surata Aal 'Imran, inclusive os versículos 130-136, é um comentário sobre os eventos da batalha de Uhud e suas consequências. A caminho do campo de batalha, o líder dos munafiqin (hipócritas), Abdullah Ibn Obai, e seus seguidores, desertaram do exército islâmico. Também durante os combates, os muçulmanos passaram por momentos extremamente difíceis. Allah (s.w.t.) usou esta batalha para servir a três propósitos importantes em benefício da Ummah. Primeiro, o isolamento daqueles que abrigavam qualquer dúvida sobre o Islam, isto é, os munafiqin, dos verdadeiros muçulmanos. Segundo, descobrindo os desejos e planos mais secretos dos munafiqin e de outros adversários do Islam, em Medina, criando a falsa impressão da vulnerabilidade do Islam. E, terceiro, a identificação das potenciais fontes de fraqueza nas fileiras muçulmanas, para preparar seus integrantes para futuras responsabilidades.
Sobre os antecedentes da batalha de Uhud, o versículo 130 e os versículos afins, podem ser vistos de várias formas. Maulana Amin Ahsan Islahi (Tadabbur-e-Qur'an, Vol.2, pp. 173-4) observa que os versículos que precedem o 130 tinham por objetivo inspirar os fiéis para o jihad. Os versículos 130-136 tiveram por objetivo preparar os muçulmanos para o infaq (sacrifícios materiais) em conexão com o jihad. Allah (s.w.t.) fez assim, proibindo, primeiro a riba que, diferente do infaq, é uma proposição materialmente benéfica para a riqueza. Então os crentes são estimulados para o infaq no versículo 134.
Maulana Muhammad Idris Kandhalvi (Ma'arif-ul-Qur'an, Vol.1, pp. 577-80) tem uma opinião diferente. De acordo com ele, os infiéis de Meca costumavam praticar a usura e utilizaram os ganhos da caravana que chegou da Síria (às vésperas da batalha de Badr) para financiar a batalha de Uhud. Por isso, Allah (s.w.t.) advertiu os muçulmanos para que se mantivessem afastados dos negócios relacionados com a usura, mesmo que fosse para financiar uma batalha contra os infiéis.
Não há dúvida de que os objetivos acima foram alcançados com estes versículos. No entanto, havia mais. Embora os versículos 130-136 fossem revelados juntamente com os acima mencionados da surata Aal 'Imran, eles constituem uma proibição formal da prática da riba para os muçulmanos. Este ponto também é confirmado pela evidência contida na surata Al Bácara 2:275. Neste versículo, Allah (s.w.t.), usando o passado indefinido, declara que o bai' (comércio) é permitido mas a riba é proibida por Ele (s.w.t.). E, se alguém procurar por este decreto sobre a riba, ele está na surata Aal 'Imran 3:130. Quanto ao fato de Allah (s.w.t.) ter decretado a proibição da riba imediatamente depois da batalha de Uhud, apresentamos, a seguir, alguns pontos a respeito. No entanto, Allah (s.w.t.) sabe mais.
A batalha de Uhud foi precedida por 13 anos de esforços na construção da fé - e do caráter - dos Companheiros do Profeta em Meca, e por um esforço semelhante de 3 anos em Medina. Quando a batalha acabou, os Companheiros tiveram que passar por duas provas rigorosas: uma, foi a batalha de Badr (no Ramadã, do ano 2 da Hégira) e a outra foi a batalha de Uhud. As credenciais dos Companheiros do Profeta (s.a.w.) como verdadeiros fiéis - que podiam resistir a todas as tentações e atribulações para agradar a Allah (s.w.t.) - foram plenamente estabelecidas. O Islam deveria se expandir depois da batalha de Uhud também. Mais provas ainda aguardavam os muçulmanos. Porém, nada como as dificuldades enfrentadas pelos primeiros Companheiros estavam no caminho dos novos sahabah.
Nos antecedentes acima, pode-se alegar que a sociedade de Medina estava literalmente purificada na época da batalha de Uhud. Além disso, era um momento crítico para a obediência incondicional a Allah (s.w.t.) e a Seu Profeta (s.a.w.) ser considerada como estabelecida. Era, portanto, o momento mais oportuno para a revelação das injunções principais, conclamando os fiéis para se afastarem dos ganhos materiais.
Um outro fator igualmente importante por trás da proibição inicial da riba é o seguinte: Salat, Saum, Zakat e Hajj foram prescritos e aperfeiçoados durante a existência abençoada do Profeta (s.a.w.). O problema da riba, com a declaração associada aos preparativos de guerra por Allah e Seu Profeta (Al Bácara 2:279), pedia um tratamento semelhante. A eliminação da riba exigia uma definição dos contornos do sistema econômico islâmico enquanto o Profeta (s.a.w.) ainda estivesse entre seus Companheiros (r.a.a.).
A proibição da riba também significava abrir caminho para um sistema radicalmente diferente para os contratos mútuos, principalmente para a transferência de recursos daqueles com sobras de fundos para os necessitados de intermediação financeira. Qualquer um que tenha um mínimo de intimidade com os processos de legislação concorda que uma tarefa deste porte não poderia ser executada em um curto período. Seria necessário um tempo suficiente para que os problemas práticos pudessem ser trazidos ao debate e que fossem resolvidos satisfatoriamente por Allah (s.w.t.) e Seu Profeta (s.a.w.).
Em resumo, a estrutura certa do espírito dos Companheiros (r.a.a.) e o tempo exigido para a construção de novas instituições podem ser considerados como os morivos principais para a proibição da riba ao final do ano 3 da Hégira. As palavras árabes usadas para descrever a proibição da riba referem-se "praticar" a riba, "exigir" ou "impor" riba. Quando uma coisa é praticada, ela se esgota em si e não há chance de seu retorno. Por outro lado, se alguma coisa é exigida, há, pelo menos, alguma probabilidade de seu retorno mais cedo ou mais tarde. Assim, indiretamente, Allah (s.w.t.) está se referindo à natureza da riba: implica numa via de mão única do doador ao tomador, sem uma via correspondente de retorno, do último para o primeiro.
Alguns estudiosos tomam a frase "praticar a riba, multiplicando o emprestado" para concluir que somente os juros compostos, e não os juros simples, são proibidos. No entanto, outros invocam a diferença entre usura e juro para restringir o objetivo do decreto alcorânico às taxas exorbitantes de juros. Esses pontos de vistas, no entanto, contrariam tanto o bom senso como o estilo linguístico do Alcorão.
Se Rs$ 100 são emprestados a uma taxa composta de 10% ao ano, por dois anos, o tomador do empréstimo será chamado a pagar Rs$ 121 no final do contrato. O mesmo resultado pode ser conseguido pelo emprestador, oferecendo Rs$ 100 a uma taxa simples de 21%. Qual seria a base para se diferenciar os dois negócios? Igualmente, o termo "taxa exorbitante de juros" também é arbitrária. Uma taxa de 10% de juros pode ser exorbitante para uma pessoa, enquanto 21% pode ser normal para outra, dependendo das respectivas condições financeiras e perspectivas de uso dos fundos.
Todos os mufassirin são de opinião que "dobrar e quadruplicar" (ou "multiplicar o emprestado") tem apenas uma importância linguística para realçar o caráter desprezível da riba. Este ponto é amparado pelo texto de Al Bácara 2:22. Depois de chamar a atenção da humanidade para Sua criação e bênçãos, diz Allah (s.w.t.): "Assim, não atribuais muitos parceiros a Allah." Isto não quer dizer, por qualquer malabarismo de raciocínio, que se possa atribuir um único parceiro a Allah (s.w.t.). A interpretação "sequer não vos aproximeis da riba" também é amparada pela redação dada em Al Bácara 2:41. Neste versículo, Bani Israel recebe a seguinte instrução: "Não negocieis Minhas Palavras a preço vil." Mais uma vez, isto não significa que haja espaço para negociá-las a um preço mais alto. Resumindo, portanto, não há espaço para se confundir o significado de riba com a referência ao versículo 130, da Surata Aal 'Imran. Simples ou composta, riba é riba.
Passemos, agora, para as outras revelações sobre riba apresentadas na Surata Al Bácara.
4. Quarta Revelação da Riba
A quarta revelação sobre a riba está em Al Bácara 2:275-277. No texto do Alcorão, esses versículos são seguidos por mais quatro sobre riba, isto é, 2:278-281. E, conforme citado anteriormente, de um modo geral os mufassirin discutem todos eles em conjunto. No entanto, os antecedentes e o tom desses versículos confirmam que, de fato, a passagem Al Bácara 2:275-281 consiste de dois conjuntos de versículos revelados em duas ocasiões distintas (ver abaixo). Antes de olhar para os versículos 275-277, vale a pena notar um ponto importante na redação do Alcorão, aplicável a todo o conjunto de versículos 2:275-281.
Na ordem textual do Alcorão, os versículos 275-281 são precedidos do mais abrangente conjunto de versículos sobre infaq, isto é, gastar voluntariamente pela causa de Allah (Al Bácara 2:261-274), e seguidos de um versículo que contém exaustivas orientações sobre empréstimos e transações creditícias (Al Bácara 2:282). Conquanto a relação destes últimos com as injunções da riba é óbvia, pode-se observar que os versículos 261-274 servem como prefácio para as injunções sobre a riba para todos os tempos futuros até o Dia do Juízo.
Nos versículos 261-274, os fiéis recebem razões obrigatórias para buscarem o infaq e são prescritos os princípios e normas para se alcançar este propóstio. Por exemplo, os fiéis são informados da recompensa pelos gastos dos bens pela causa de Allah é setecentas vezes, ou mais (Al Bácara 2:261). Além disso, o uso dos bens pela causa de Allah (s.w.t.) não deve: a) buscar glórias pessoais; b) provocar desconforto àqueles que recebem; e c) dar coisas ruins ou ilícitas (Al Bácara 2:262-267). Os versículos sobre infaq se encerram na seguinte nota:
"Aqueles que gastam de seus bens pela causa de Allah dia e noite, secreta ou abertamente, terão sua recompensa com o seu Senhor. Eles não serão tomados pelo medo e nem se lamentarão." (Al Bácara 2:274).
Entre outras coisas, esses versículos preparam mentalmente os leitores do Alcorão para as injunções da riba contidas nos versículos 275-281. Depois essa digressão útil, olhemos para Al Bácara 2:275-277. Os antecedentes desses versículos são os seguintes. A riba foi proibida no final do 3o. ano da Hégira, de acordo com Aaal 'Imran 3:130. Este mandamento afetou claramente tanto o tomar como dar a riba em novos empréstimos. Mas também trazia implicações para a riba sobre os débitos até então existentes. Os Companheiros (r.a.a.) jamais perderam qualquer oportunidade para a imediata obediência total e incondicional a Allah (s.w.t.) e a Seu Profeta (s.a.w.). Portanto, é certo que, logo após o decreto da Surata Aal 'Imran, eles tenham rogado uma orientação adicional sobre a riba aplicada aos débitos já existentes. E, dado o seu nível de consciência de Allah, é muito provável que alguns Companheiros (r.a.a.) também tenham abordado o Profeta (s.a.w.) com questões sobre a riba exercida no passado.
Um outro fator importante naquela época, foi o papel dos judeus, que costumavam lidar com a riba (An Nissá 4:161). Eles eram parte da sociedade de Medina quando o Profeta (s.a.w.) migrou para aquela cidade. Havia três tribos judaicas em Medina: Banu Qainqa', Banu Nudair e Banu Quraizah. Eles dominavam a vida econômica de Medina. Os ansar frequentemente tinham dívidas com eles, provenientes de empréstimos baseados na riba. Os judeus tinham suas reservas em relação ao Islam. Ao primeiro atrito seguiram-se as hostilidades, que acabaram levando à expulsão de Banu Qainqa' para territórios sírios, no 2o. ano da Hégira. Banu Nudair exilou-se em Khyber, a alguns quilômetros de Medina, no 4o. ano da Hégira e no ano seguinte, Banu Quraizah foi penalizada por seu comportamento na batalha de Ahzaab. A este evento, seguiu-se a batalha de Khyber, no 7o. ano da Hégira. Esta sequência de acontecimentos significa que, pelo menos até o ano 7o., uma parte da sociedade resistia ativamente à ascensão do Islam em Medina. É claro que havia a intolerância dos munafiqin, o outro grupo de Medina, com intenções execráveiss em relação ao Islam.
Ao final do 3o. ano da Hégira, o Islam tomou uma posição firme contra a riba. Pode-se ver que os interesses pessoais continuaram na contra-ofensiva, por temerem a perda da clientela e por causa do ressentimento contra o Islam. Questões que mesclavam a riba (sobre uma quantia emprestada) com lucros (sobre o comércio usando o mesmo dinheiro) podem ser vistas como parte da propaganda. Os que compreendem a natureza da guerra psicológica sabem muito bem que qualquer campanha de propaganda funciona enquanto o tema ainda está recente na mente das pessoas. Assim, a evidência circunstancial sugere que no instante em que Allah (s.w.t.) proibiu a riba (conforme em Aal 'Imran), os judeus e seus defensores iniciaram uma guerra de atrito contra o Islam. Não seria surpresa se isto confundisse alguns muçulmanos. Nos antecedentes acima, os versículos 275-277 dizem:
"Os que praticam a riba (usura) ressuscitarão no Dia do Juízo como alguém que foi levado à loucura por Satanás. Isto acontecerá porque afirmaram que (os lucros) sobre o bai' (comércio) é o mesmo que riba, no entanto, Allah permitiu a bai' mas proibiu a riba. Mas, quem foi aconselhado por seu Senhor (como em Aal 'Imran 130) e (por consequência) afastou-se da riba, será absolvido pelo passado e seu julgamento só caberá a Allah. Contudo, os que continuarem a usar a riba nas dívidas pendentes, estes pertencem ao Inferno, onde viverão." (2:275)
"Allah abomina a riba e multiplica o sadaqaat. Por certo que Allah não aprecia o pecador ingrato."(2:276)
"Em verdade, os que são fiéis e praticam o bem, observam o Salat e pagam o Zakat, serão recompensados pelo seu Senhor e não temerão e nem se lamentarão." (2:277)
O versículo 275 traz um comentário sobre as dúvidas surgidas sobre a natureza da riba e algumas diretrizes a respeito da riba sobre as dívidas existentes. A questão que mais chama a atenção das pessoas é explicada primeiro.
Os defensores da riba apoiam=se na idéia de que ela não é diferente dos lucros provenientes do bai' (comércio). No entanto, para ridicularizar as injunções de Allah (s.w.t.), os provocadores trocaram a ordem de comparação e sustentaram: "Bai' é como a riba." Como no caso dos constantes desafios dos infiéis sobre a sincronicidade do Qiyamah, Allah (s.w.t.) não respondeu diretamente a esta provocação. Ele apenas observou que o bai' era permitido e a riba proibida. Esta observação também é um lembrete educado para todos de que o importante no caso da riba não é o retorno (ou a taxa de retorno) do dinheiro de uma pessoa e sim a forma de transação. Uma forma (isto é, o comércio) é permitida, mas a outra (empréstimos baseados em juros) é proibida. E, assim é, a juízo de Allah (s.w.t.).
Tanto o comércio como os empréstimos envolvem riscos - o risco do comércio em um caso, mas o risco de crédito comercial (dos tomadores de empréstimos) no outro. O tempo também não é fundamental, pois os emprétimos podem ser de curto prazo. As operações de overnight nos mercados financeiros internacionais é um exemplo. Por outro lado, um empréstimo representa uma troca homogênea. Isto é, neste caso, os itens dados e tomados de volta pertencem à mesma categoria. Além do mais, a transferência de propriedade em um empréstimo é apenas para a pendência do empréstimo e o emprestador não é uma parte legal para o uso do objeto emprestado. A natureza da troca e essas dimensões legais diferenciam os empréstimos de outras transações. Portanto, as injunções da riba determinam os princípios, segundo os quais, as transações de empréstimos devem ser realizadas.
Conforme observado anteriormente, o ponto "Allah proibiu a riba" constante do versículo 275, confirma que a proibição absoluta da riba não tinha acontecido antes desse versículo. O versículo 275 prossegue dando diretrizes para a "eliminação da riba" do sistema econômico. Isto inclui a abolição de cláusulas referentes à riba nos contratos então existentes. A escolha das palavras por Allah (s.w.t.) tem dois significados. Primeiro, uma vez baixado o decreto sobre a riba (Aal 'Imran 3:130), todos os seus cálculos foram suspensos imediatamente. Em segundo, os que continuaram praticando a riba foram esclarecidos de que sua morada seria o Inferno, por não aceitarem a condição impositiva dos versículos do Alcorão, a Palavra de Allah (s.w.t.).
Depois do ponto acima, Allah (s.w.t.), que criou o homem e que conhece sua natureza, salienta alguns aspectos negativos da riba e aspectos positivos do sadaqaat. Este é o foco do versículo 276. Até onde praticar a riba e gastar pela causa de Allah afetam a vida em níveis individual e nacional? Um relato detalhado desta questão exigiria um estudo em separado. No entanto, um aspecto pode ser citado aqui, para servir de base para se pensar sobre o assunto. Do ponto de vista econômico, a riba desencoraja o investimento e, portanto, reduz o desenvolvimento econômico. Por outro lado, o sadaqaat aumenta a demanda agregada e, assim, faz crescer a atividade econômica. A mensagem se completa no versículo 277, chamando a atenção da criação de Allah (s.w.t.) para o caminho do sucesso: ter Iman, praticar o bem em geral e observar o Salat e o Zakat, em particular.
5. A Quinta Revelação da Riba
A quinta revelação da riba está em Al Bácara 2:278-281. Esses versículos têm antecedentes complexos. Sua apreciação adequada é essencial para a sua compreensão correta, assim como para evitar proposições questionáveis sobre a riba (ver abaixo).
Os versículos acima podem ser colocados dentro de uma perspectiva própria, observando-se, primeiro, que, com a revelação de Aal 'Imran 3:130 e Al Bácara 2:275, no Alcorão, completou-se a legislação necessária a respeito do assunto. E isto aconteceu no final do 3o. ano da Hégira. Esses versículos referem-se às transações de empréstimos. Este ponto também está confirmado em Al Bácara 2:279. Conforme explicado antes, os mandamentos acima também pediam uma ação posterior, a fim de promover outras mudanças que se adequassem às diretrizes alcorânicas. Este propósito foi alcançado com as orientações prescritas pelo Profeta (s.a.w.) para as práticas de comércio. Os ahadith de Sayidena Fudalah Ibn Obaid, com a menção à batalha de Khyber, confirmam a existência de tais injunções.
Não havia nada de incomum a respeito da prática das injunções acima. Todos os Companheiros do Profeta as acataram. Se, no entanto, alguém involutariamente cometesse um erro e chegasse ao conhecimento do Profeta (s.a.w.), ele simplesmente o corrigia. Tudo foi normal até depois da conquista de Meca, que aconteceu em 20 do Ramadã, do 8o. ano da Hégira. A conquista de Meca foi seguida da batalha de Hunain, em 6 de Shawwal, daquele mesmo ano. Logo após, Bani Thaqif foi cercada em Tai'f pelas forças islâmicas. O cerco durou duas semanas. O Profeta (s.a.w.) não pressionou por uma derrota militar de Bani Thaqif. Ele voltou para Medina, via Meca, depois de indicar Attaab Ibn Asid (r.a.a.) governador de Meca.
No 9o. ano da Hégira, no mês de Ramadã, uma delegação de Bani Thaqif, sob a chefia de Abdyaleil, visitou Medina. A delegação apresentou diversas exigências para entrar para o Islam. Uma delas foi a permissão para realizar negócios com riba. O Profeta (s.a.w.) não atendeu ao pedido. Embora alguns deles abraçassem o Islam, a delegação voltou, depois de concluir um acordo de paz geral com o Profeta (s.a.w.). Bani Thaqif aos poucos entrou para o Islam e todos eles tornaram-se muçulmanos na Última Peregrinação (Hajj al-Wida'), no 10o. ano da Hégira.
O incidente que levou à revelação dos versículos 278-281, envolveu Bani Amr Ibn Omair - da família Thaqif - e Bani Al Mughirah - uma famílida de Bani Makhzum, de Meca. Os detalhes a seguir foram fornecidos por Allama Badruddin Ayni, em Omdatul Qari: Sharah Sahi Bukhari:
Zaid bin Aslam, Ibn Juraij, Muqatil bin Hayyan e Suddi relataram como se segue: O versículo 278 e seus afins, foram revelados no contexto de uma controvérsia entre Bani Amr bin Omair, de Bani Thaqif, e Bani Al Mughirah, de Bani Makhzum. Bani Amr e Bani Al Mughirah tinham alguns negócios de riba entre eles que datavam da época da jahiliyyah (isto é, antes do advento do Islam). Quando o Islam surgiu, as duas famílias se tornaram muçulmanas. Contudo, quando chegou o momento de quitar o negócio, Bani Amr, de Thaqif, exigiu a riba. Houve uma discussão acalorada e Bani Al Mughirah recusou-se a pagar a riba alegando que o Islam a tinha abolido. O assunto chegou a Sayydena Attaab bin Asid (r.a.a.), o governador de Meca, que solicitou, por escrito, uma decisão do Profeta (s.a.w.), que, nessa ocasião, encontrava-se em Medina. Então, os versículos em tela foram revelados. O Profeta (s.a.w.) escreveu a ele. Depois de tomar conhecimento do julgamento, Bani Amr disse: "Nós nos voltamos para Allah e desistimos da riba que nos era devida." Depois, todos eles desistiram dela.
Segundo o Tafsir-e-Mazhari (Urdu, vol. 2, p.105), Abu Y'ala relata o incidente acima em seu Masnad, sob a autoridade de Kalbi e Abu Saleh; este último atribuiu sua narrativa a Abdullah Ibn Abbas (r.a.a.). Qurtubi (Tafsir Al Qurtubi, vol. 3, p. 363) também relata este mesmo incidente,com referência a Ibn Ishaq, Ibn Juraij, Suddi e outros. Nas narrativas de Abu Y'ala e Qurtubi, consta que Bani Amr submeteu seu caso à permissão do Profeta (s.a.w.), ao passo que Bani Thaqif teve permissão para continuar a praticar a riba em troca por ter-se tornado muçulmano. Conforme observado acima, este não era o caso. E também é improvável pelas seguintes razões: Em primeiro lugar, Bani Thaqif assinou seu acordo de paz no 9o. ano da Hégira, no mesmo ano em que o Profeta (s.a.w.) concluiu um outro pacto com Bani Najran. Este último tratado explicitamente exigia a suspensão das práticas de riba por Bani Najran como uma condição para a paz. Cabe salientar que Bani Najran não se converteu ao Islam.
Em segundo lugar, a surata Al Cáfirun é um testemunho para o fato que o Profeta (s.a.w.) jamais transigiu com não muçulmanos a respeito dos fundamentos do Islam, nem mesmo nos tempos mais difíceis. Como poderia o caso de Bani Thaqif ser uma exceção no auge do Islam?
Em terceiro, Bani Amr é considerada muçulmana em Al Bácara 2:278. A aceitação do Islam, automaticamente os obrigou às injunções alcorânicas sobre a riba. Não há um único exemplo em que o Profeta (s.a.w.) tenha isentado os muçulmanos de uma ordem do Alcorão.
À vista do acima exposto, a insistência de Bani Amr deve ter sido causada pela falta de conhecimento pessoal dos termos de Al Bácara 2:275, para dizer o mínimo, e não pode ter-se basedo em alguma espécie de permissão do Profeta (s.a.w.). Cabe também notar que a conversão ao Islam de Sayyidena Attaab (r.a.a.) e sua indicação para governador de Meca, feita pelo Profeta (s.a.w.), aconteceram quase que ao mesmo tempo. Ele, então, estava com 21 ou 22 anos de idade. Pode-se argumentar que ele também não soubesse das injunções sobre a riba em Al Bácara 2:275-277. No entanto, considerando a confiança que o Profeta depositou nele, e tendo em vista que, naquele época, havia outros Companheiros em Meca, esta informação não se sustenta. A explicação mais provável para o gesto de Sayyidena Attaab é que as partes envolvidas na disputa eram pesos pesados e que ele julgou adequado procurar uma solução do problema junto ao Profeta (s.a.w.) para não dar início a um conflito tribal entre as pessoas de Meca e Bani Thaqif.
Apesar de algumas diferenças menores nos detalhes, algumas fontes, levando à mesma informação e a um consenso geral entre os vários mufaserin respeitados no tocante aos pontos básicos, confirmam que o incidente narrado aconteceu no final do 9o. ano da Hégira ou início do 10o. ano. As palavras em todas as narrativas dão a entender que o Profeta (s.a.w.) "escreveu" a Attaab Ibn Asid (r.a.a.). Isto deve ter acontecido antes do 25o. dia de Zi 'adah, do 10o. ano da Hégira, quando o Profeta (s.a.w.) partiu de Medina para fazer o Hajj Al-Wida'. No 9o. dia de Zil Hijjah, do 10o. ano da Hégira, o Profeta (s.a.w.), em pessoa, ordenou a abolição da riba sobre todas as dívidas até então existentes. Este foi um decreto retrospectivo. Depois, o Profeta (s.a.w.) ainda ficou neste mundo por apenas 81 dias. O dito anúncio foi feito na presença dos Companheiros reunidos em Arafat, vindos de toda a Arábia. Pode-se concluir, portanto, que o tempo da revelação dos versículos sob referência foi depois da conquista de Meca, porém antes da última peregrinação. Os versículos 278-281 são os seguintes.
"Ó fiéis, temei a Allah e desisti de tudo o que ficou por conta da riba, se sois realmente fiéis." (2:278)
"Cuidado! Se não acatardes esta ordem (e desistir de toda riba pendente), então Allah e de Seu Profeta declararão guerra contra vós. Contudo, se fizerdes Taubah (arrependimento juntamente com a decisão de promover os acertos dos erros passados), tereis direito apenas ao vosso principal. Não defraudeis (zulm) e não sereis defraudados (zulm)." (2:279)
"No processo de acerto das contas pendentes, se vosso devedor estiver em situação apertada, concedei um período de graça para que ele possa resolver suas obrigações. No entanto, se preferirdes converter as dívidas pendentes em sadaqah (caridade), será melhor para vós, se quereis saber." (2:280)
"E temei o Dia em que retornareis a Allah. Nesse dia todos serão plenamente recompensdos por seus atos, e não estarão sujeitos a zulm." (2:281)
O tom emprestado à redação confirma que alguma coisa aconteceu que aborreceu Allah, o Todo Poderoso (s.w.t.), que também é o Senhor, o Mestre e o Sustentador do universo. Conforme explicado acima, este foi realmente o caso. Em lugar de se dirigir aos muçulmanos para responder às suas questões envolvendo riba (como em 2:275), Allah (s.w.t.) enfrenta os destinatários: "Ó vós, que vos afirmais fiéis". Assim, o versículo 278, nada mais é do que um aviso. A sua redação torna claro que a riba é uma ofensa de proporções inimagináveis e que Allah, o Todo Poderoso, simplesmente não reconhece como fiel aquele que não abandonar a prática da riba. Período. O estilo é um reflexo da ira do Senhor Absoluto do universo em seu ápice, criando um arrepio de frio de medo na espinha dos destinatários: "Por que não ouvis? Já não vos foi dito? Cuidado. Abandonai a riba imediatamente." (2:278) ou enfrentareis as hostilidades de Allah, o Todo Poderoso, e de Seu Profeta (2:279) - conhecendo muito bem o que espera pelos fracos: humilhação e destruição total.
Enquanto a primeira parte do versículo 279 adverte para as terríveis consequências se não houver a desistência da prática da riba, a segunda parte também é importante. Os credores estão rigorosamente restritos aos seus princípios, quando estiverem negociando as dívidas existentes. De acordo com o versículo 280, se os devedores estiverem (de verdade) enfrentando dificuldades para cumprir com suas obrigações de pagamento, os credores são instruídos a conceder um período de graça. Este princípio já tinha sido observado pelos antigos Companheiros (r.a.a.), depois da revelação de Al Bácara 2:275, no final do 3o. ano da Hégira. Porém, agora, o decreto de Allah (s.w.t.) o formalizou. Isto pode ser encarado como uma bênção especial Sua para a Ummah. Mais e mais pessoas iriam entar para o Islam no futuro. Acordos de antigos contratos que envolviam riba pelos novos convertidos ao Islam poderiam criar problem sociais. Este versículo antecipou-se a tais problemas.
O versículo 280 também contém uma diretriz adicional sobre o tratamento dos empréstimos não escritos. Eles deverão ser tratrados como sadaqah pelos emprestadores.
Considerando que o versículo limita os emprestadores ao seu principal, ele também encerra a seguinte nota a respeito do zulm: Nem os credores serão defraudados pelos devedores e nem aqueles defraudarão os devedores. A ligação entre a prática da riba pelos credores e o zulm, de um modo geral, é fácil de compreender. No entanto, como o zulm se aplica aos devedores? Os ahadith de Sayyidena Abu Hurairah esclarecem que os devedores cometem zulm quando deliberadamente provocam atrasos no cumprimento de suas obrigações de pagamento.
A maioria dos comentaristas do Alcorão interpretam o ponto sobre o zulm no versículo 279 para concluir que a gênesis da riba é o zulm. Por dedução, eles chegam à proibição da riba. Muitas razões são apresentadas. No caso dos empréstimos de consumo, emprestar com juros equivale a explorar o necessitado. No caso dos empréstimos à produção ou ao comércio, está implícito que a riba propicia ao capitalista uma oportunidade de usufruir dos frutos dos esforços dos tomadores de empréstimos sem que haja um mínimo de trabalho seu ou sem qualquer risco. Outros usaram esse versículo para defender sua posição pela indexação dos empréstimos à inflação (para compensar os emprestadores pela perda do poder aquisitivo de seus empréstimos). Ambas as interpretações tomam o significado do versículo fora do contexto. A posição factual é a que se segue.
Na verdade, o versículo 279 contém uma ordem de Allah (s.w.t.) para que credores e devedores evitem o zulm. Tecnicamente falando, o zulm ocorre quando qualquer das partes tem seus direitos negados conforme as injunções da Shari`ah. Assim, a pergunta que precisa ser feita é: Quais eram as injunções (importantes) da Shari'ah, do ponto de vista de credores e devedores, na época da revelação de Al Bácara 2:278-281? Essas injunções são apresentadas muito claramente em Aal 'Imran 3:130 e Al Bácara 2:275-277. Nas duas ocasiões, não há menção a zulm ou a seu equivalente. Portanto, quando Allah (s.w.t.) decretou que credores e devedores evitassem o zulm, isto significa a adesão às ditas injunções e nada mais.
A conclusão acima tem implicações importantes para orientação do raciocínio sobre riba. Primeiro, a riba pode levar ao zulm, porém o zulm, por si só, não é razão para a sua proibição. Segundo, não há espaço para generalizar a interpretação "principal do emprestador" para procurar uma compensação pela depreciação do valor dos empréstimos devido à inflação enquanto existir a pendência. Isto completa a revisão dos versículos alcorânicos sobre a riba neste estudo. No capítulo seguinte, são resumidos os principais pontos sobre os vários conjuntos de versículos.
6. Quadro Geral
Este estudo estabelece que a proibição da riba aconteceu ao final do 3o. ano da Hégira. Assim, houve um período de mais de sete anos na vida do Profeta (s.a.w.), em que injunções detalhadas sobre a riba foram passadas e praticadas. Algumas mensagens importantes nos versículos sobre a riba, que podem orientar o raciocínio sobre o assunto, são as seguintes. Vários desses pontos foram evitados nos capítulos anteriores para que a linha de argumento fosse mantida.
1. A riba não está entre os mutashabihat (termos ambíguos) do Alcorão.
2. Os versículos das suratas Ar Rum e An Nissá servem como uma introdução às injunções da riba. No entanto, pelo que diz respeito aos muçulmanos, diferentemente das injunções para o khamr (álcool), a proibição da riba foi instantânea, conforme Aal 'Imran 3:130.
3. Todos os cinco conjuntos de versículos sobre a riba têm um ponto em comum: onde quer que a riba seja proibida ou penalizada por Allah (s.w.t.), há uma citação positiva sobre o gasto por Sua causa. Considerando que a repetição nas comunicações orais equivale a sublinhar algum aspecto importante na tradição escrita, este aspecto não pode ser considerado como uma coincidência, principalmente no caso do Alcorão - a Palavra de Allah (s.w.t.). O ponto essencial pode ser visto assim.
Allah (s.w.t.) usa os casos extremos de infaq, sadaqah e zakat para dizer aos fiéis que, embora eles sejam bem vindos por gastarem tudo o que possuem pela causa Dele, no entanto, a riba tem que ser evitada a todo custo. Mais especificamente, se alguém optar por uma transação de empréstimo, ela deve ser realizada em base igual (ver o ponto 4, abaixo), independente dos custos que o emprestador possa ter de arcar durante o processo. Por exemplo, o custo do empréstimo, o custo em termos de impostos e o custo do retorno da quantia emprestada. Se a pessoa combinar esses pontos com o da permissibilidade do bai' (Al Bácara 2:275), a mensagem completa dos versículos sobre a riba pode ser a que se segue:
Visto que os fiéis podem abandonar o que possuem sem procurar qualquer retorno pela causa de Allah, através da infaq, e visto que os fiéis podem obter lucros através do comércio, no entanto, eles devem fazer transações de empréstimos em base individual.
A importância deste ponto é que, através das injunções da riba, Allah (s.w.t.) definiu os limites para a classe de transações permissíveis para os muçulmanos.
4. O quadro geral a respeito das transações de empréstimos é o que se segue (os empréstimos podem ser em moeda ou em bens):
a) Em princípio, todas as dívidas devem ser acordadas uma a uma, em base igual. Portanto, se o empréstimo for o trigo a peso, somente a mesma quantia pode ser reclamada.
b) Se as circunstâncias justificarem, os tomadores de empréstimos devem ter um período de graça para pagar o principal.
c) Se um emprestador tiver um empréstimo não escrito, este será sadaqah (um ato de caridade).
5. As injunções da riba se aplicam a todas as trocas que se comparem, em natureza, com as transações de empréstimos. Por exemplo, a compra de novas notas de dinheiro por notas rasuradas, de negociantes de moedas.
6. A proibição de riba é mutlaq (aplicável absolutamente sem qualquer isenção). Assim, as injunções da riba têm os seguintes aspectos.
a) Riba é riba. Diferenças entre juros simples e compostos, ou juros e usura não se aplicam.
b) A proibição da riba se aplica independentemente de se o principal envolvido foi usado com propósitos para a produção ou para o consumo (não produtivo).
c) As previsões dos versículos se aplicam a todos os fiéis. Assim, a proibição da riba tem as seguintes dimensões:
i. As injunções da riba se aplicam aos indivíduos e às entidades coletivas, tais como companhias, bancos e governo.
ii. Em uma transação que envolva a riba, um fiel pode tanto tomar como dar a riba. O Profeta (s.a.w.) esclareceu ao máximo que as duas coisas são proibidas. Portanto, não há qualquer questionamento quanto à permissibilidade dos muçulmanos fazerem tais transações com outros muçulmanos, em um estado islâmico ou em um país não muçulmano.
iii. A riba surge no contexto de um empréstimo ou em uma transação semelhante entre dois indivíduos (que devem observar as injunções de Allah a nível pessoal). Assim, se a transação acontecer entre dois indivíduos quaisquer, independente da relação entre eles, ela deve ser realizada em base igual. Em outras palavras, opiniões como "sem riba entre um senhor e seu escravo" precisam de reconsideração.
7. Depois da revelação de Al Bácara 2:278-279, se um muçulmano desafiar voluntariamente as injunções da riba e a questão chegar ao nível judicial em uma sociedade muçulmana, não só o contrato será considerado nulo como, também, a responsabilidade da autoridade, como representante da Shari'ah, é aplicar o ta'zir (penalidade shar'i) ao infrator.
8. As injunções da riba se aplicam a todos os residentes não muçulmanos de um país muçulmano.
9. O padrão e o texto dos versículos sobre a riba sugere que para tirar conclusões posteriores, não há problema em se olhar para a proibição da riba. A abordagem correta seria desenvolver uma economia livre da riba e comparar seu desempenho com uma outra baseada na riba, em termos de um critério escolhido, tal como o nível de atividade econômica, investimento, grau das desigualdades nas receitas e riqueza, etc.
10. Que "há uma declaração de guerra de Allah (s.w.t.) e de Seu Profeta (s.a.w.), chama nossa atenção para os seguintes pontos:
a) Allah (s.w.t.) é pessoalmente parte no assunto.
b) "Guerra" significa que se a riba continuar, os fiéis não poderão esperar por uma vida calma neste mundo seja a nível pessoa ou nacional.
c) Que a declaração de guerra também é de "Seu Profeta (s.a.w.)", para significar que Allah, o Todo Poderoso, pretende fazer cumprir Sua Vontade através de Seu(s) representante(s) na terra. Portanto, todos os que sinceramente se dizem muçulmanos, têm por obrigação desempenhar seu papel na eliminaçãod a riba.
Por fim, pode-se mencionar que os pontos acima podem ser desenvolvidos depois, a fim de se chegar a uma definição adequada de riba, a posição real dos ahadith sobre riba, os contornos de uma economia isenta de riba e uma estratégia para a sua eliminação das sociedades muçulmanas contemporâneas. A seguir, damos algumas referências úteis a este respeito, além das já citadas neste documento.
1. "What is Riba?", Hikmat-e-Qur'an, novembro de 1994, seção inglesa, pp.1-6.
2. "Selected Issues in Riba" Hikmat-e-Qur'an, junho de 1995, seção inglesa, pp.1-11.
3. "Riba-Free Alternatives for Modern Commercial Banking", Hikmat-e-Qur'an,fevereiro-março de 1995, seção inglesa, pp.1-8.
4. "Fiscal Implications of Elimination of Riba", Hikmat-e-Qur'an, abril de 1994, seção inglesa, pp.1-5.
5. "Islamization of Economy: International Transactions". Documento lido no Seminário sobre Islamização da Economia, realizado no Institute of Policy Studies, de Islamabad, em abril 1994.
(*) O autor é professor de Economia no Instituto Internacional de Economia Islâmica, da Universidade Islâmica Internacional, Islamabad.
Por Dr.Sayyd Tahir (*)
Fonte: sbmrj.org.br